Proposta atual do Future-se segue agredindo a autonomia universitária

Por João Carlos Salles

Em entrevista publicada no site da Andifes, o presidente da entidade, João Carlos Salles, defende o desbloqueio total das verbas bloqueadas nas universidades. Ontem o MEC anunciou que vai desbloquear apenas R$ 2 bilhões da Educação, mantendo R$ 3,8 bilhões bloqueados. Para universidades e institutos federais a previsão é desbloquear R$ 1,1 bilhão – metade da verba bloqueada hoje.
Foto: Divulgação/ UFBa

O novo texto do Programa Universidades e Institutos Empreendedores e Inovadores – Future-se, publicado nesta sexta-feira pelo MEC (Diário Oficial da União, de 03 de janeiro de 2020) e submetido a consulta pública, será certamente objeto de debate em nossa comunidade. Como sempre, cada instituição não deixará de fazer a análise mais detida. Entretanto, sendo essa a terceira versão da proposta, já conhecemos e reconhecemos seus termos e sua estratégia. O governo mantém suas convicções: e são tão fortes que ele não recua mesmo em pontos já fortemente questionados, nem sequer após a rejeição das versões anteriores por nossas universidades.

Com efeito, mantém-se na proposta atual a agressão à autonomia universitária. Continua a interferência na gestão de contratos (por fundações ou organizações sociais), mas também na orientação didático-científica de nossas instituições, com a indicação de disciplinas que devem ser oferecidas ou acrescentadas ou de focos temáticos que terão prioridade.

Há aqui inclusive uma pressão política nova e estranha, pois se subordina, preferencialmente, a concessão de recursos da CAPES ao Programa Future-se e não à necessidade e à política mais ampla de aperfeiçoamento e formação de pessoal de nível superior. Por isso, sendo unilateral a proposta e estando focada em uma concepção de inovação e empreendedorismo estreita, não está à altura da riqueza e da diversidade de nossas instituições.

A ênfase em retribuição por desempenho continua presente inclinando a gestão por reforço operante; e substituir a expressão “contrato de desempenho” por “contrato de resultado” (ou “Fundo Soberano do Conhecimento” por “Fundo de Investimento do Conhecimento”) não lhe muda o sentido, que é o de diminuir o papel das administrações centrais.

Mantêm-se ademais a ideia de Sociedade de Propósito Específico (que enfraquece a estrutura organizacional e o interesse da instituição como um todo) e a indistinção entre instituições públicas e privadas na revalidação de diplomas, além do uso de termos impróprios em uma legislação, como o de “facilitação” de acreditação de disciplinas. E continua sim a ideia de adesão, porque condicionado o Programa à celebração de um contrato, com o que se quebra a unidade das políticas destinadas ao conjunto do sistema de ensino superior.

Com foco unilateral tão claro, a menção ao artigo 207 da Constituição torna-se contraditória, pois o Programa Future-se afronta, já em seu título, uma disposição essencial desse artigo, qual seja, a obediência ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

A extensão universitária é ignorada; o foco é maior na inovação do que na pesquisa que a possibilita; e o interesse do mercado parece mais relevante que a produção do conhecimento, quando, ao contrário, a produção de conhecimento, cultura e arte envolve relações mais amplas, diversas e generosas com a sociedade, não podendo ser reduzida apenas a indicadores de empregabilidade.

A procura de recursos adicionais de financiamento continua a envolver a utilização do patrimônio de imóveis das universidades — o que, por várias razões, muito tem preocupado nossas comunidades acadêmicas e deixa a sociedade em estado de alerta. Enfim, algumas possibilidades interessantes mencionadas na proposta não necessitam do contexto legal do Future-se, pois já são realizadas por nossas instituições ou dependem apenas da implementação de legislação já existente, como o novo marco legal de ciência, tecnologia e inovação e a lei dos fundos patrimoniais.

Vale repetir: nossas instituições vão certamente analisar em detalhe a nova proposta. Entretanto, sua semelhança com as versões anteriores é evidente. Em sendo assim, ao que parece, também a proposta atual do Programa Future-se atenta contra a autonomia universitária, indica descompromisso do Estado com o financiamento público da educação superior e agride a plenitude, a integridade e a unidade de cada instituição universitária, bem como do inteiro sistema de ensino superior federal.

João Carlos Salles. Presidente da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior) e reitor da UFBA (Universidade Federal da Bahia).

Publicado em 03 de Janeiro de 2020 em O Globo