O futuro das universidades e o Covid-19

Por Moises de Lemos Martins

Todos aqueles que sonham com uma universidade sem professores, que o mesmo é dizer, uma universidade sem pensamento, têm na pandemia do Coronavírus a possibilidade de radicalizar esta tese. Porque o Coronavírus pode funcionar como um laboratório, onde sejam testadas estratégias atrevidas de dispensa dos professores, precarizando-os, com contratos a termo, e mesmo uberizando-os.

A plataforma informática tornou-se, hoje, o habitat natural do professor. As aulas, tal qual como as reuniões, quaisquer reuniões de um qualquer Conselho, Pedagógico, Científico, de Gestão, da Escola, do centro de investigação ou do departamento, assim como a participação em júris de provas e concursos académicos, passam a ser integralmente virtuais.

Mas aquilo que ocorre, hoje, por razões de emergência, pode converter-se amanhã no quotidiano normalizado dos professores.

É verdade que há muito as lógicas empresariais e gestionárias, que negam a universidade como casa do pensamento, a tomaram de assalto, impondo-lhe o modelo empresarial do sistema da qualidade (um pedagogismo, sem o rosto dos alunos), assim como a quantofrenia científica, dos artigos em revistas de fator de impacto e das citações como suporte para a reputação académica.

As lógicas empresariais e gestionárias contradizem uma universidade com professores. O seu objetivo é o de uma universidade reorientada para o mercado, o mercado financeiro e o mercado de trabalho, um objetivo para a tornar competitiva em produtos e serviços.

Esta religião que presta culto à empresa e à gestão empresarial traduz um modo de ver o mundo, que passa pelo controle do tempo, e tem no virtual, de produção informática, a possibilidade de uma realização absoluta, um pouco à semelhança da liturgia das horas, de tradição medieval e monástica, que é um modo de rezar, tendo em conta as 24 horas do dia.

É este o sentido da crônica que publico no Correio do Minho:

O Professor Valente de Oliveira é o Presidente do Conselho Geral da Universidade do Minho. Formado em Engenharia Civil pela Universidade do Porto, aí fez carreira académica, tendo chegado a professor catedrático em 1980. Entre 1985 e 2003, foi Ministro em três Governos de Cavaco Silva, e também no XV Governo Constitucional, de Durão Barroso. Mas a sua primeira pasta governativa foi em 1978/1979, como Ministro da Educação e Investigação Científica, no Governo de Mota Pinto.
No mês passado, a 17 de fevereiro, a Universidade do Minho celebrou o 47.º aniversário, sendo ponto alto da cerimónia a atribuição do título de doutor honoris causa ao Professor de Medicina, da Universidade de Santiago de Compostela, Angel Carracedo, pela excelência da sua obra em genética clínica, genómica e genética forense. No elogio que o Professor Óscar Gonçalves fez de Angel Carracedo, ficámos a saber que neste professor e investigador a genética tanto desvendava os códigos da doença, como os segredos da vida. E com que deslumbramento aprendi que “no nosso ADN, somos 99,9% idênticos”! Ou seja, biologicamente somos iguais, tenhamos a cor de pele que tivermos, o que temos, todavia, é a riqueza da uma infinidade de culturas.

A fechar os festejos do dia da Universidade do Minho, foi o Professor Valente de Oliveira quem usou da palavra. Partindo de categorias, que estabelecem as Ciências Sociais e Humanas como “ciências pré-competitivas”, e todas as outras ciências, as Ciências Físicas, as Ciências da Vida e as Ciências da Engenharia, como “ciências competitivas”, Valente de Oliveira falou das quatro fases por que passou a universidade. Na primeira fase, a universidade estava virada para o ensino, com os seus professores a darem aulas. Acrescentou, aliás, que essa foi a universidade que conheceu, tanto aquela em que estudou, como aquela de que foi Ministro. Seguiu-se uma segunda fase, em que a universidade se virou para a investigação, pelo que passou a ensinar o que investigava. Os professores continuavam a dar aulas, mas eram sobretudo investigadores. Depois disso, entrou-se numa terceira fase, com a universidade a tomar como modelo as empresas.

A universidade deveria reorientar-se para o mercado: o mercado financeiro e o mercado de trabalho, devendo, além disso, ser competitiva em produtos e serviços. Mas entende o Professor Valente de Oliveira que a empresa tem sentido dificuldades em cumprir este objetivo. Por essa razão, justificar-se-ia, hoje, que a universidade entrasse numa nova fase. E seria a gestão a boa nova a que a universidade deveria obedecer. Mas não é novo na universidade o evangelho da religião da empresa e da gestão. As lógicas empresariais e gestionárias, que negam a universidade como “casa do pensamento”, assim a abastardando, há muito que a tomaram de assalto, impondo-lhe o modelo empresarial do sistema da qualidade, assim como a quantofrenia científica, dos artigos em revistas de fator de impacto e das citações como suporte para a reputação académica.

A universidade não passa, hoje, com efeito, de uma fortaleza vazia e de uma casa em ruínas, por mais esplendidamente que tenha sido descrita a sua promessa, há quase um século e meio (1888), por Friedrich Nietzsche em O Crepúsculo dos Ídolos. É tarefa da universidade “apreender e ensinar a ver, e também aprender e ensinar a pensar. “Aprender e ensinar a ver, ou seja, habituar os olhos à calma, à paciência, deixar que as coisas se aproximem de nós; aprender a adiar o juízo, a rodear e a abarcar o caso particular a partir de todos os lados”. “E aprender e ensinar a pensar, quero eu dizer, aprender e ensinar uma técnica, um plano de estudos, uma vontade de mestria, que o pensar deve ser aprendido como é apreendido o dançar, como uma espécie de dança…”

De supetão, todavia, um vírus sitiou a Cidade e acabou por se instalar no coração da comunidade humana, sem que nada o fizesse prever e sem que estivéssemos preparados para esta guerra.
Por razões sanitárias, a universidade fechou as portas. E os professores barricaram-se em casa, à semelhança do que acontece, aliás, com toda a população.
E eu dei comigo a pensar: a religião que presta culto à empresa e à gestão empresarial traduz um modo de ver o mundo. Esta religião tem como credo a realidade virtual, produzida informática e eletronicamente. E o que tem em mente é o controle do tempo, naturalizando a dominação dos indivíduos. Na Cidade, sitiada hoje pelo Coronavírus, o pedagogismo vai encontrar, então, o laboratório que lhe permite sonhar com estratégias mais atrevidas, testando também novos cometimentos.

Todos aqueles que sonham com uma universidade sem professores, que o mesmo é dizer, uma universidade sem pensamento, veem no e-learning a possibilidade de uma nova façanha, a das aulas virtuais, ou seja, a das aulas sem alunos, com os professores acorrentados pelo pedagogismo a uma plataforma informática.

E com o coronavírus instalado na Cidade, a situação radicaliza-se. Agora, a plataforma informática tornou-se o habitat natural do professor. E é assim que as aulas, tal qual como as reuniões, quaisquer reuniões de um qualquer Conselho, seja Pedagógico, Científico, de Gestão, da Escola, do centro de investigação ou do departamento, assim como a participação em júris de provas e concursos académicos, passam a ser integralmente virtuais. É como se a universidade passasse a rezar às 9h o Pai-Nosso, às 12h as três Avé-Marias, às 15h a Salve Rainha, às 17h o Terço… e por aí adiante.

Hoje, sem dúvida, por razões de emergência, mas amanhã como situação normalizada, as convocatórias para rezar ao deus virtual chegam à meia-noite e são as matinas; às três da manhã e são as laudes; às seis horas e são a tércia; ao meio dia e é a sexta; às três da tarde e é a noa; às seis da tarde e são as vésperas; às nove da noite, depois do pôr do sol e são as completas.
A religião que tem como credo o virtual e presta culto à empresa e à gestão empresarial tem esta inspiração, medieval e monástica, de controle do tempo. Mas, vendo bem, muitos dos laicos oficiantes das “ciências competitivas”, para utilizar a expressão de Valente de Oliveira, assim como os engenheiros da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES) sempre quiseram rezar assim.

É pesquisador do Centro de Estudos de Comunicação Sociedade (CECS) da Universidade do Minho