Pesquisadores brasileiros não se rendem à falta de recursos

Apesar do corte de verbas para a ciência em todo o Brasil, profissionais continuam firmes em várias frentes de trabalho relacionadas ao coronavírus

As universidades brasileiras se multiplicam em esforços para conter o avanço do novo coronavírus. Os pesquisadores têm dito que ciência se faz com constância, em equipe e com recursos. Porém, a educação, ciência e tecnologia foram áreas bastante afetadas por cortes orçamentários e, principalmente, pela suspensão de bolsas para a pós-graduação, responsável por grande parte das pesquisas nas instituições de ensino superior.

A pedido do jornal Estado de Minas, o cientista político Wesley Mateus analisou os dados do governo federal nas áreas de educação (ensino superior), ciência e tecnologia. Paralelamente, o EM também fez levantamento sobre as frentes de trabalho nas universidades públicas.

No primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro (2019), foram gastos R$30,4 bilhões no ensino superior e R$ 4 bilhões em desenvolvimento tecnológico e engenharia, desenvolvimento e difusão de conhecimento científico, valores previstos no plano plurianual aprovado nos mandatos anteriores (Dilma Rousseff e Michel Temer).

No entanto, nos três primeiros meses de 2020 observa-se uma queda de 12,4% nos valores executados na subfunção de ensino superior, que sai de R$ 5,18 bilhões no primeiro trimestre de 2019 e passa para R$ 4,59 bilhões no primeiro trimestre deste ano. Nos valores gastos em Ciência e Tecnologia não há registros no Portal da Transparência de despesas pagas ou liquidadas para as subfunções de desenvolvimento científico e desenvolvimento tecnológico e engenharia no primeiro trimestre de 2020. Contudo, nas despesas empenhadas percebe-se uma redução de 34,51% em relação ao mesmo período do ano anterior. Sai de R$ 459 milhões para aproximadamente R$ 301 milhões.

Apesar do estrangulamento, inúmeras ações estão em desenvolvimento, conforme a reportagem levantou na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade de Brasília (UnB), UFRJ, Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Universidade de Goiás (UFG).

Professores e estudantes se dividem em diversas frentes de trabalho: pesquisas para criar um teste rápido para a COVID-19; auxílio no processo de diagnóstico com a adequação dos laboratórios universitários para que façam a testagem; e apoio aos laboratórios centrais de saúde pública dos estados, os Lacens, que estão sobrecarregados frente ao crescente número de casos suspeitos.

Outra frente de trabalho dos pesquisadores é o sequenciamento do genoma do vírus para acompanhar todas as mutações, ação essencial para o controle viral. O Brasil fez o sequenciamento em 48 horas, tempo recorde, realizado pela equipe da professora Ester Sabino, coordenadora do Instituto de Medicina Tropical da USP. “Existem sete espécies de coronavírus, quatro delas comuns desde a infância. Três delas com essa forma epidêmica – SARS, MERS e COVID-19. Em um mês, tem mutações. O sequenciamento é para entender como está”, diz Ester.

As descobertas foram depositadas em bancos públicos e permitiram que os dados pudessem ser usados por outros pesquisadores, aumentando assim as chances de novos achados científicos para combater a pandemia. Aliás, outra frente de atuação dos cientistas é a criação de redes de pesquisadores para que o Brasil desenvolva vacinas e medicamentos próprios para o combate à doença.

Não obstante, antes de se ter vacinas e medicamentos, as universidades se empenham na fabricação de equipamentos para serem usados pelos profissionais da saúde para que não se contaminem e criam protótipos de equipamentos hospitalares essenciais para os pacientes mais graves nas unidades intensivas de terapias (UTIs). “Temos coisas absolutamente fantásticas saindo”, afirma o professor de epidemiologia Roberto Medronho, coordenador do Grupo de Trabalho Multidisciplinar para Enfrentamento da COVID-19 da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Uma delas são os estudos avançados para criação de teste diagnóstico nacional.

Na UFRJ, pesquisadores do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) e do Instituto de Biologia (IB) estão desenvolvendo tecnologia para detectar anticorpos em pessoas com suspeita de COVID-19. O teste, que dá resposta rápida, é mais barato que o teste de PCR (Reação em Cadeia da Polimerase), que tem sido aplicado em todo o país. As pesquisas de testes rápidos também estão sendo realizadas na UFMG e na USP.

Testes de infecção

As universidades ainda colocaram à disposição os laboratórios universitários para a realização de testes, hoje o grande gargalo no Brasil. O Instituto de Ciências Básicas da Saúde (ICBS) da UFRGS realiza entre 400 e 500 testes de diagnóstico do novo coronavírus por dia. Na UFMG, os pesquisadores nos laboratórios universitários têm capacidade de produzir 300 testes por dia – número que deve aumentar.

A fabricação de produtos essenciais para a prevenção e tratamento da doença também foi assumida pelas instituições federais. Elas produzem álcool em gel para suprir os hospitais universitários e os hospitais públicos. A UnB enviou proposta ao Ministério da Educação (MEC) para a produção na fábrica-escola do Hospital Universitário. Na UFRJ, a produção está sendo feita pelo Instituto de Química e Escola de Farmácia. 

As universidades têm usado a tecnologia de impressão 3D para produzir as faceshields. Na UFRGS, o trabalho é realizado de forma voluntária por docentes, técnicos e bolsistas nas impressoras 3D de vários laboratórios de pesquisa. Na UFG, o equipamento hospitalar foi feito com placas de PETG, um derivado do PET (polietileno tereftalato).

A UFRJ está em fase final da pesquisa para criação de protótipos de ventiladores pulmonares e negocia para que os equipamentos hospitalares sejam produzidos em larga escala pela iniciativa privada. Especialistas estimam que o Brasil necessitará, nas próximas semanas, de mais de 20 mil ventiladores pulmonares mecânicos (ver matéria na página 4). No entanto, a produção das empresas brasileiras é bem aquém: na ordem de 2 mil por mês.

“É fundamental. É crítica a falta desses equipamentos no mundo”, diz o professor Roberto. A universidade não tem planta industrial para produção em escala, mas busca parcerias com empresas. O professor destaca que não deve ter fins comerciais e, nesses casos, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) acelera processos para a produção de insumos e equipamentos. A produção de ventiladores pulmonares é uma parceria da Coordenação de projetos de pesquisa na área de engenharia (Coppe), Instituto de pós-graduação e pesquisa em engenharia e a Faculdade de Medicina e o Hospital Universitário Clementino. A universidade também está auxiliando iniciativas de moradores de comunidades de favelas no Rio de Janeiro.

A UnB pretende criar salas de situação em 100 municípios para atendimento e orientações online das comunidades. A proposta foi enviada ao MEC. A iniciativa se baseia na experiência exitosa da sala de situação da Faculdade de Ciências da Saúde. Está em estudo como a universidade pode prestar apoio no processo de diagnóstico. “Temos equipamentos e podemos transferir para a Secretaria de Estado da Saúde (SES) e hospitais onde estão sendo feitos os diagnósticos”, diz Cláudia Naves, decana em pesquisa e inovação e presidente do comitê de pesquisa inovação e extensão.
A UFRJ faz parte de estudo multicêntrico com FioCruz, hospitais universitários da UERJ, UFF e UFRJ. “É o braço do estudo que a OMS realizando em todo mundo”, diz Roberto Medronho.

A USP criou uma rede colaborativa para auxiliar nos diagnósticos do coronavírus, incluindo laboratórios de 17 unidades da universidade. A maior instituição de ensino superior do Brasil ainda ofertou leitos hospitalares para a instalação de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), equipamentos e recursos humanos para a realização de testes laboratoriais para detecção da doença.

Comitês permanentes

As universidades criaram comitês permanentes e interdisciplinares para lidar com a crise. São centros de comando formados por professores de diversas áreas do conhecimento. Eles costumam se reunir diariamente por videoconferência. Muitos desses professores também auxiliam os governos locais na tomada de decisões.

A primeira tarefa do comitê da UFRJ foi criar um centro de testagem para alunos, funcionários e professores. A tarefa é importante pelo grande nível de internacionalização. A universidade mantém o Instituto Brasil China principalmente na gestão de óleo e gás. Vale lembrar que o novo coronavírus surgiu na cidade chinesa de Wuhan.
O comitê da UnB fez chamamento público para que a comunidade possa apresentar projetos de pesquisa, inovação e extensão que ajudem no combate direto e imediato da pandemia e seus efeitos. Desde fevereiro, o comitê programa ações para atender a comunidade acadêmica, professores, alunos e funcionários da universidade. “A universidade não parou. Estamos trabalhando três vezes mais. Não tem tarde, noite nem final de semana”, diz a professora Cláudia Naves.

Dinheiro do próprio bolso

Os pesquisadores brasileiros são convocados a dar resposta à crise no momento em que ocorreram significativos cortes nos orçamentos e no número de bolsas para os pesquisadores. “Vivemos dois anos de muita turbulência e insegurança. Tivemos cortes em bolsas de pós-graduação e verba para pesquisa. Estamos em um equilíbrio muito precário. Se estivéssemos em pleno vigor, teríamos uma participação muito maior. Mas a contribuição das universidades públicas será brilhante. Os professores pesquisadores têm um pique que você não imagina. Têm muitas ideias”, diz Cláudia.

Anunciados em 18 de março, os cortes recentes atingiram 46% dos cursos da UnB, sendo que 9% deles tiveram mais de 50% das bolsas cortadas. Em 6% dos cursos o corte foi integral. Áreas de excelência perderam 30% das bolsas.

“Situação muito complicada. Pesquisa exige todo um ambiente: cursos, laboratórios e grupos de pesquisa, técnicos, professores, graduandos e pós-graduandos. Não adianta ter laboratório e não ter gente. Os melhores vão embora. E sem  manutenção de equipamento, o sistema desmonta”, alerta. Porém, Cláudia reforça que é da ciência que vem essa resposta. “No entanto, o conhecimento científico não se faz de uma hora para outra. São décadas e séculos. Aí vem e joga fora. É um contrassenso total. desperdício de recursos”, diz.

Dos 686 laboratórios na UnB, 300 são na área de saúde e vida. São, ao todo, 600 grupos de pesquisa. Cada um tem em média 10 participantes, totalizando quase 6 mil pessoas. Os pesquisadores apontam que nunca a ciência foi tão perseguida no Brasil e que isso resulta numa fuga de cérebros. “Quase que impede. Um desmonte nunca visto na história do país, nem na ditadura ocorreu perseguição à universidade e à ciência como agora”, diz Roberto Medronho.

Muitas pesquisas têm sido mantidas tendo em vista a responsabilidade social dos cientistas. “Tem muita gente tirando dinheiro do próprio bolso para conseguir manter as pesquisas, dando soluções para o bem da sociedade. Ciência é vida. Ciência é bem-estar. Ciência é saúde. A pandemia mostra cabalmente: sem a ciência não teremos condições de superar reveses, naturais ou não, que assolam a humanidade”, conclui.

Fonte: Estado de Minas