Conto de horror de Poe lembra Brasil de Bolsonaro acossado por pandemia

Por Dirce Waltrick do Amarante

“Por muito tempo a Morte Rubra devastara o país. Jamais pestilência alguma fora tão mortífera ou tão terrível […]. Mas o príncipe Próspero sabia-se feliz, intrépido e sagaz. Quando seus domínios começaram a despovoar-se, chamou à sua presença um milheiro de amigos sadios e frívolos, escolhidos entre os fidalgos e damas da corte, e com eles se encerrou numa de suas abadias fortificadas.” Assim começa o conto “A Máscara da Morte Rubra”, do norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849), em tradução de José Paulo Paes.

O conto foi publicado pela primeira vez em maio de 1842 na Graham’s Magazine. Umas das fontes dessa história gótica teria sido um relato do poeta e escritor Nathaniel Parker Willis, conterrâneo e colega de trabalho de Poe. Nele, Willis narrava um “baile de cólera” de que teria participado em Paris. “A Máscara da Morte Rubra” fez sucesso e foi também fonte de inspiração para outras histórias de horror, entre elas “O Intruso”, de H.P. Lovecraft. O que é mais intrigante agora é que, no Brasil, talvez estejamos vivendo o relato de Poe na vida real.

O romancista austríaco Robert Musil já dizia que “o poeta se antecipa ao progresso político (o que é poesia um pouco mais tarde será política)”. Se essa afirmação procede, poder-se-ia dizer que vivenciamos a primeira parte do mencionado conto de Poe quando, no dia 15 de março, o presidente da República incentivou o povo a ir às ruas festejar seus “feitos” em plena pandemia do coronavírus.

Não bastasse isso, cumprimentou parte de seus “amigos sadios e frívolos”, que se acotovelavam na frente de sua “abadia”.

Nosso “príncipe Próspero”, que, por prepotência, não se curva a qualquer peste, tal como no conto de Poe, decidiu ainda comemorar seu aniversário com seus escolhidos na sua “abadia fortificada”, no dia 22.

Na abadia do século 21, tal como na do século 19, amplamente abastecida, “o mundo externo que se arranjasse”. E Poe prossegue: “Por enquanto, era loucura pensar nele ou afligir-se por sua causa. O príncipe tomara todas as providências para garantir o divertimento dos hóspedes. Contratara bufões, improvisadores, bailarinos, músicos”. Quanto aos convidados brasileiros do presidente, cabe-nos perguntar quem eram eles e por que ignoraram a “furiosa pestilência lá fora”.

A festa do Palácio do Planalto, assim como a festa imaginada pelo escritor norte-americano, já dura algumas semanas e se espalha por outras salas, ou melhor, por outras pastas do governo.

Certos “comensais” do Planalto já atuaram como se estivessem de fato em um baile de máscaras, no qual é permitido, contudo, tirá-las e colocá-las a seu bel-prazer diante da população, apostando mais na performance do que na profilaxia diante da situação emergencial de saúde que o Brasil atravessa.

Cumpre destacar que, no conto de Poe, “luz alguma emanava de lâmpada ou candelabro em qualquer das salas”, as quais foram estranhamente decoradas pelo príncipe. A propósito, onde estariam a secretária especial de Cultura, o ministro da Cidadania e o da Infraestrutura?

Talvez “um braseiro cuja luz, filtrando-se através dos vitrais”, pudesse iluminar ainda a sala do Ministério da Saúde, como diria Poe, mas vemos que a ilumina cada vez menos.

Parece que alguns amigos do presidente nem imaginam que no Brasil, assim como no principado do conto de horror, existe uma “sala negra”, descrita por Poe da seguinte forma:

“Na sala negra […] havia, encostado à parede oeste, um gigantesco relógio de ébano. Seu pêndulo ia e vinha num tique-taque lento, pesado, monótono. Quando o ponteiro dos minutos completava a volta do mostrador e a hora estava para soar, saía dos brônzeos pulmões do relógio um som limpo, alto, agudo, extremamente musical, mas de ênfase e timbre tão peculiares que, a cada intervalo de hora, os músicos da orquestra viam-se constrangidos a interromper momentaneamente a execução para ouvi-lo. Nesses momentos, era forçoso que os dançarinos parassem de dançar, e um breve desconcerto se apoderava da alegre companhia”. Os “brônzeos pulmões” alertam hoje para a gravidade do coronavírus.

O fato é que a atitude e o discurso do chefe maior da nação retumbam no comportamento e no discurso de quem o cerca. Volto a citar Musil: “Dizer um absurdo é a coisa mais garantida: em algum momento ela acontecerá! Basta lançar uma estupidez no mercado”.

E a estupidez foi lançada —aliás, ela vem sendo relançada todos os dias. Não por acaso, até a quarentena, levada a sério em muitos outros países, por aqui é menosprezada, e o vírus é visto apenas como “uma gripezinha”, algo que não atingirá os amigos frívolos e o príncipe atlético.

A pandemia, para o presidente e seus “convivas”, se transformou em oportunidade para, em rede nacional, falar de desafetos (jornalistas, políticos, emissoras de TV etc.) e louvar apoiadores, por mais controversos que sejam.

Talvez se deva contar mesmo é com a sorte, ou com “portões de ferro”, com ferrolhos bem rebitados, como diria Poe, e também com “orações”, como ressaltou o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, no dia 22 de março, um domingo.

É como se as orações ou evocações místicas fossem capazes de impedir o vírus de transpor as muralhas do Brasil. Seguindo essa linha de raciocínio, pode-se, portanto, justificar a flexibilização da quarentena, permitir a abertura de bancos, lojas, escolas etc.

Afinal, como disse o contista gótico, “além de seus muros, campeava a Morte Rubra”, mas na nossa “abadia” a vida é uma festa, uma festa para poucos.

Se a vida imita a arte, é prudente conhecer o final da história de Edgar Allan Poe: mais cedo ou mais tarde todos se dão conta de que um estranho se infiltrou na festa.

“Nos trajes e nas atitudes do estranho, nada havia de espirituoso ou de conveniente. Alto e lívido, vestia uma mortalha que o cobria da cabeça aos pés. A máscara que lhe escondia as feições imitava com tanta perfeição a rigidez facial de um cadáver que nem mesmo a um exame atento se perceberia o engano.” Uma cena assustadora, mesmo “para os pervertidos, para quem vida e morte são brinquedos igualmente frívolos”.

Quando os olhos do nosso “príncipe Próspero” caírem sobre essa figura espectral, esperamos que não seja tarde demais.

Texto publicado originalmente na Folha de S. Paulo

Dirce Waltrick do Amarante é escritora, tradutora e ensaísta, integra a equipe de docência Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução (PGET) e do Curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

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