Por que o Brasil pode esperar na fila após a descoberta de uma vacina contra a Covid-19

Gargalos na produção, interesses de grandes potências, falta de governança global e preços altos serão desafios para a imunização em todo o mundo

A assembleia geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), realizada nesta semana, deixou clara a ansiedade geral sobre a disponibilidade de uma eventual vacina contra a Covid-19, com uma resolução que pede “acesso equitativo” de todos países.

Mais de 70 meses se passaram  entre o começo do desenvolvimento de uma vacina contra a Mers e os seus primeiros testes clínicos. No caso da Covid-19, foram 79 dias. Há mais de 100 pesquisas em andamento para alcançar um imunizante, e oito delas já começaram ou estão prestes a começar testes clínicos, o que mostra a urgência e o vigor da ciência para enfrentar a pandemia.

Mas a ansiedade se explica porque, se há bons motivos para acreditar no desenvolvimento de uma vacina em tempo recorde — o que, para muitos especialistas, significa de 12 a 18 meses —, é mais incerto quem terá acesso a ela inicialmente. Produzir bilhões de doses necessariamente demandará tempo, e certas populações, entre diferentes países e também dentro deles, terão de ser priorizadas. O temor de muitos sanitaristas é que a lei do mais forte e do mais rico prevaleça.

— Há muitas coisas que não se sabe, e temos visto muitos exemplos de comportamento monopolista, nos quais países fazem compras bilaterais junto a empresas — afirmou Gavin Yamey, professor de Saúde Global na Universidade Duke. — Precisaremos de um nível de cooperação nunca antes visto, entre países, o setor privado, a filantropia e outros.

Mais do que a propriedade intelectual, a capacidade de produção será o principal gargalo para uma estratégia de vacinação global, e países que financiam grandes farmacêuticas levam vantagem, afirmou Rafael Vilasanjuan, diretor de políticas e desenvolvimento global do Instituto de Saúde Global, de Barcelona.

— Como produzir 5 bilhões de vacinas, ou 10 bilhões, caso a dose tenha que ser dupla? — disse. — A verdade é que nenhum dos países está isento de tensões muito unilaterais neste momento, pensando no que pode obter para si.

A declaração de acesso equitativo feita ontem na OMS, sem caráter vinculante, é um bom agouro, por afirmar que todos terão em princípio o mesmo direito à propriedade intelectual. Restam muitas dúvidas, contudo, sobre como isso será operacionalizado, disse Francisco Viegas, consultor no Rio de Janeiro da Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi).

— Há muitas dúvidas sobre como uma possível cooperação funcionaria no mundo real, o que envolve transferência de tecnologias, capacidade de produção, abertura de patentes e a adaptação de políticas regulatórias — afirmou.

Um dos problemas, segundo David Salisbury, que foi diretor do programa nacional de imunização britânico e hoje está na Chatam House, é que será muito difícil produzir as instalações industriais. Também não há leis que obriguem as companhias a obedecer .

— Não estou otimista, porque será muito difícil produzir, manufaturar vacinas é altamente complexo — afirmou. — A OMS diz que queremos equidade, mas são empresas privadas. Não há jeito de evitar, é um beco sem saída.

Situação do Brasil

O preço da vacina também será determinante para o seu acesso. Em meio às disputas, alguns tentam abordagens multilaterais. Fundada há 20 anos, a Aliança Global para Vacinas e Imunização (Gavi), em Genebra, lançará, no próximo dia 4, um compromisso antecipado de mercado (AMC), contrato vinculativo que garante mercado para quem desenvolver o produto, voltado aos 73 países mais pobres, que não incluem o Brasil.

Segundo todos os especialistas entrevistados, o país leva vantagem em relação ao mundo em desenvolvimento, por contar com as fábricas de Bio-manguinhos/Fiocruz e o Instituto Butantã, dois dos maiores centros da América Latina.

Segundo Katherine Bliss, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, de Washington, “os países e as indústrias precisam pensar e agir agora, entender quais são as suas necessidades e se preparar”. De acordo com Akira Homma, pesquisador emérito da Fiocruz, um dos desafios para essa preparação será que ainda não se conhece a plataforma tecnológica que será usada, o que dificulta a adaptação. O pesquisador afirma que a fundação “está em contato com grandes laboratórios” do mundo, para parcerias.

— Se houver uma plataforma tecnológica de que não dispomos, muito distante da nossa, demorará mais a produzirmos — afirmou.

Segundo José Temporão, que foi ministro da saúde durante a epidemia de H1N1, as instalações do Instituto Butantã permitiram, na época, a imunização de 100 milhões de pessoas. Ele diz que “é muito improvável” o mesmo instituto possa ser usado para o coronavírus, e que ainda é incerto se a adaptação de Bio-Manguinhos poderá ser simples ou complexa.

— Isto vai depender da tecnologia utilizada, que não sabemos se será mais ou menos complexa, o se demandará uma produção mais lenta, ou mais breve. Mas o Brasil é o único pais em desenvolvimento que tem duas grandes plantas, e isto nos dá uma vantagem.

Leia na íntegra: O Globo