Faltam recursos, sobra burocracia

Tempo perdido com trâmites burocráticos está entre as maiores insatisfações
dos professores e professoras

Era para ter sido uma simples doação, mas se tornou um exemplo acabado de como a burocracia pode atravancar a rotina acadêmica. Um professor da UFSC foi premiado internacionalmente e recebeu como gratificação uma placa de processamento gráfico, usada na computação de alto desempenho, e que custa US$ 8 mil. Sua intenção desde o início era doar o prêmio para o Departamento de Informática e Estatística da universidade. Não parecia uma tarefa complicada. Mas entre o começo do trâmite e a instalação do equipamento passaram-se dois anos. “Foi uma experiência extremamente desgastante, que me fez pensar em desistir várias vezes ao longo do processo”, conta o professor Márcio Castro, que fez a doação.

Não é à toa que o excesso de burocracia aparece como uma das maiores insatisfações dos professores e professoras da universidade. Na pesquisa encomendada pela Apufsc para traçar o perfil da docência da UFSC, 71% dos entrevistados se mostraram insatisfeitos com a burocracia, atrás apenas dos 76% que reclamaram da falta de recursos para pesquisa e extensão. A crítica está no tempo perdido com tarefas administrativas, como o preenchimento de formulários, pesquisas de preços, prestação de contas, que tiram dos docentes o tempo que deveria ser dedicado à ciência e à sala de aula. Uma estimativa feita pelo Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior e Institutos de Pesquisa (Confies), em 2017, aponta que os pesquisadores brasileiros gastam um terço de seu tempo resolvendo questões burocráticas – mas a sensação é de que é muito mais que isso.

Em alguns casos, como no registro das atividades docentes, o desgaste está em ter que documentar as mesmas informações manualmente em sistemas diferentes, que não estão conectados (e nem sempre funcionam bem). É preciso atualizar o currículo Lattes, mas também o currículo no sistema da UFSC e o Curriculum Vitae em inglês e português, além de escrever relatórios anuais de atividades e resumos desses relatórios. É tempo desperdiçado, literalmente. Mas há também os casos em que o trâmite burocrático traz prejuízos concretos e mensuráveis para o professor, como nos afastamentos para congressos, por exemplo. É necessário fazer o pedido com 60 dias de antecedência, preencher um formulário online com as mesmas informações do pedido de afastamento e uma carta com os mesmos dados, tudo impresso, assinado e digitalizado. Quando se recebe um convite em cima da hora fica impossível viabilizar a viagem.

Para não correr o risco de perder um evento importante, a professora Carmem Rial, do Departamento de Antropologia da UFSC, passou a reservar alguns dias das férias para esses afastamentos. “É uma gambiarra, na verdade. Se eu não puder cumprir os 60 dias e precisar me afastar para algum congresso, eu tiro férias naquele período”, diz. “Isso significa que as minhas férias são usadas para eu poder trabalhar numa coisa que é fundamental para a universidade que é a tal da internacionalização.” Recentemente, ela foi convidada para participar da mesa de abertura de um congresso da União de Antropologia do Mercosul, na Argentina, mas por um problema no departamento o processo não correu dentro do prazo. “Recorri à reitoria para que eu pudesse representar a UFSC no evento, mas não teve jeito, porque o pedido não foi feito com 60 dias de antecedência”, diz.

A compra de materiais de consumo e equipamentos é outro transtorno. Além de ser uma tarefa que exige conhecimento específico, tem um trâmite complexo, com prazos e exigências que podem comprometer o funcionamento de um laboratório ou a continuidade de uma pesquisa. No Departamento de Ciências Morfológicas da UFSC, por exemplo, o professor Juliano Andreoli Miyake descreve o processo de compra de um solvente como algo torturante: é preciso verificar o período de compra desse material, se ele é permanente ou de consumo, fazer três orçamentos, fazer um formulário incluindo esses valores, depois é preciso abrir o processo de licitação, verificar se foi aprovado ou não e só então efetuar a compra. “Isso é extremamente cansativo”, diz Juliano. “E todos os departamentos acabam tendo que fazer a mesma cotação para adquirir um mesmo material, de maneira desnecessária.

Quando os insumos precisam ser importados a complicação é ainda maior. Há casos de perecíveis que têm de chegar logo ao destino ou produtos novos, que não têm uma regulamentação própria. Um estudo realizado pela UFRJ, em 2014, indica que 84% dos pesquisadores entrevistados já deixaram de realizar alguma pesquisa (ou parte dela) ou tiveram de mudar suas especificações por problemas relacionados à importação.

A cobra que morde o próprio rabo

O coordenador do Centro de Ciências da Educação (CED), Antonio Brunetta, compara o ciclo da burocracia com uma cobra que morde o próprio rabo. Os professores são obrigados a lidar com uma série de sistemas, sem ter formação para operá-los. “Tem gente que passa a vida aqui dentro [da UFSC] e se aposenta sem dominar sistemas que seriam básicos para sua vida funcional”, diz. “Dentro da universidade, eu tenho que lidar com SPA [Sistema de Processos Administrativos], Sigpex [Sistema Integrado de Gerenciamento de Projetos de Pesquisa e de Extensão], uma série de plataformas e formulários e eu não sou treinado pra isso.”

Ele pondera, no entanto, que certos processos burocráticos são fundamentais em uma instituição autocrática e autônoma como é uma universidade federal. “Para gerenciar um processo colegiado, invariavelmente, isso exige um controle burocrático.” É por conta dos próprios regimentos que a realização de uma eleição para reitor, por exemplo, está garantida independentemente de quem gere a Educação Superior do país.

O pesquisador Fernando Peregrino, presidente do Conselho Nacional das Fundações de Apoio às IFES e de Pesquisa Científica e Tecnológica (Confies), defende mais flexibilidade e diz que a burocracia é um problema cultural, que tem origem na visão de que a gestão pública é mais eficiente quanto maior o controle sobre ela. “Não faz sentido um controle para evitar prejuízo com o qual se gasta mais do que o desperdício eventual”, diz Peregrino, que em 2017 coordenou uma pesquisa nacional sobre o custo da burocracia na ciência. Ele lembra que, nas aquisições para uma pesquisa científica, é preciso se levar em conta que são hipóteses que estão sendo testadas, o que torna o controle mais difícil. “É preciso flexibilidade, não para se fazer o que quiser, mas para se obedecer ao método científico. Do contrário, você engessa a pesquisa.”

“Se botar no papel quanto custou meu tempo, a gente jogou um monte de dinheiro fora”

Julio Cordioli

No Centro Tecnológico da UFSC (CTC), não faltam exemplos de entraves burocráticos que poderiam ser evitados. No projeto de construção de uma das poucas câmaras de temperatura do Brasil, conduzido pelo professor da Engenharia Mecânica Julio Cordioli, a escolha da empresa parceira levou um ano para ser concluída. “Como exigido, foram feitos três orçamentos com empresas distintas, o que demanda um tempo absurdo. Talvez valesse a pena, lá no começo, escolher uma empresa com capacidade, sentar e explicar uma única vez”, diz o professor. “Se botar no papel quanto custou meu tempo, a gente jogou um monte de dinheiro fora.” Cordioli defende a possibilidade de os recursos serem remanejados mais facilmente, ainda que isso implique em uma prestação de contas mais rígida.

A UFSC já promoveu algumas iniciativas – ainda que pontuais – para reduzir a perda de tempo com trâmites internos da universidade. No ano passado, a federal foi a primeira do País a emitir diplomas digitais para os formandos. O projeto, que tem até o ano que vem para ser implementado em todas as universidades, estima reduzir de 90 para 15 dias o prazo de autenticação do diploma. A versão eletrônica também é mais barata: custa R$ 85, contra R$ 360 do diploma físico.

Outra iniciativa recente é a plataforma Assina UFSC. Pelo sistema, professores, estudantes e técnicos-administrativos podem compartilhar documentos e assiná-los digitalmente. A facilidade já está disponível, mas seu uso ainda não se popularizou entre os servidores. O professor Jean Everson Martina, do Laboratório de Segurança em Computação (LABSec) da UFSC, e coordenador do Assina UFSC, explica que, por insegurança jurídica, nem todo mundo dentro da universidade aceita a assinatura digital, mesmo após a publicação de uma portaria que dá subsídio a ela. “Estamos indo atrás de um parecer da Procuradoria para que pacifique a questão da assinatura digital e que todas as pessoas dentro da UFSC possam aceitá-la”. Ou seja: nem mesmo um projeto que nasce com o propósito de aliviar a burocracia consegue escapar dela.