Contra o descenso, ou contrasenso

Há um fato na vida que qualquer ser humano aprende. Cedo ou tarde, aos poucos, de modo traumático, ou sem se dar conta. Não deixa de ser uma dessas obviedades que poucos assumem ou se encorajam a afirmar publicamente. O fato? A gente morre.

E a partir de uma determinada idade, a constatação deixa de ser importante porque a indagação passa a constituir-se em torno do modo como a fatalidade ocorrerá.

Entre a mudança da grade curricular. A desistência da professora efetiva de assumir o cargo. O processo seletivo para professor substituto. A reforma da sala 403 prometida e engavetada, aperto o zero, o elevador fecha as portas, penso no projeto de estágio dos estudantes no Hospital Universitáriod+ banca sobre o cine de Almodóvar que aceitei como suplente mas acabei  passando a titulard+ a reunião com o SECARTE e DAC sobre espaço ou o tipo de cadeiras para o mini-anfiteatro do curso de Artes Cênicas, percebo que o elevador parado não me leva a nenhum lugar. Espaço cerrado entre quatro paredes de uma cela improvisada. Ai Vallejo! Essas não são brancas. Volto a tentar o térreod+ nada. Abrir a porta, nada, “tecleteio” cada um dos andares nervosamente e assumo que só me resta o alarme. Ouço seu timbre impaciente e assumo que uma vez mais me encontro encerrada entre quatro paredes de aço no meio do nada que é comunicar-se com o resto do mundo só pelo alarme intermitente. Aplico então o que aprendi no Baiacu de Alguém tocando casaca e ensaio a percussão, aplicando um ritmo que da intermitência  passa ao ternário ou do binário ao quaternário e me lembro que da primeira vez em que fiquei meia hora,  o porteiro não conseguia descobrir de onde vinha o alarme, mas espera, dessa vez parece que há uma voz.

– Ei, já te ouvi, pode parar. Foram avisar o porteiro.

– Tá.

– E aí, você está bem?

– Tô bem. Pode deixar. Segunda-feira, fiquei meia hora.

-Ah! Anteontem?

-É. Aquele dia foi chato porque senti falta de ar.

-Jura? Mas o elevador tem ventilação, não tem?

–  Claro, mas na segunda-feira eu vinha de outras impaciências. Engraçado!  Descubro que o ar não depende só do ambiente, depende também do interior da pessoa para respirar o que fica fora.

– Como assim?

– Estou no mesmo lugar, a situação é semelhante e hoje não sinto falta de ar…

– Por quê?

–  Talvez seja porque hoje dei menos aulas… não estive em nenhuma banca cruel com o réu que tem que assumir a culpa de ter escrito… Tive menos conflitos no cotidiano. Mas escuta aqui, eu não tenho outra opção. Sou obrigada a esperar o porteiro, ou o técnico aqui dentro mesmo, mas você, por que não desce pela escada?

– Sabe, eu não tenho nada que fazer hoje e vou ficar conversando com você, tá?

– Não precisa se preocupar…Quem é você?

– Sou o Tiaguinho do curso de Cinema. E você?

– Alai.

– Ah! Você é professora?

– Sou. E você é calouro?

– Não. Estou aqui há cinco anos. O técnico já vai chegar.

O porteiro desligou e ligou a chave mas dessa vez não adiantou.

– Aperte o zero!

– Apertei, mas não há luz.

– Aperte a tecla para abrir a porta!

– Não há energia!

– Então o jeito é esperar o técnico…

– Ele vem de Curitiba?

– Não. De São Paulo. Você tem algo para comer aí?

– Tenho. Pode ir…

Todos me dicen el negro, Llorona
Negro y tan cariñoso.
Yo soy como el chile verde, Llorona
Picante pero sabroso.

Canto enquanto várias tentativas são feitas para me liberar. Chupo uma bala. Escuto ruídos e finalmente chega o técnico e resolve o problema. A porta vai se abrindo lentamente e só meu suor demonstra o embate funesto entre meu corpo e a solitária imprevista.

Saio do prédio B do CCE certa de que sou uma mera sobrevivente e deixo correr o cotidiano, pensando que o modo de morrer pode vir assim, quem sabe de um elevador com esse defeito perpétuo. Veio assim, foi instalado assim e ninguém se sente responsável. Essa talvez seja a grande diferença entre viver precariamente ou no primeiro mundo.

De repente, esse defeito costumeiro que, segundo o técnico, indicaria uma defesa da própria máquina para evitar uma possibilidade de curto circuito, pode deixar de operar por desgaste.  Aí o caso passaria da crônica à tragédia e levaria  alguns corpos ao fundo do poço. Após os velórios, então sim, danificada a máquina, enterrados os mortos, outro elevador seria comprado porque a vida teria que continuar.

Dia 11/03/2009