Morreu Chico Buarque

Atores somos todos nós,
e cidadão não é aquele que vive em sociedade:
é aquele que a transforma!

Augusto Boal

Morreu Chico, um pouco. E, no entanto, fez tanta poesia que ecoa ao som de uma voz nostálgica ao fundo e ao longe, dizendo “vai passar”. Morreu Chico, aquele todo poeta entre o povo – “jardineiros, guardas noturnos, bombeiros, babás”. São tantos absortos e tão apressados nas plataformas do metrô que nem se lembram que “comiam luz”. Oprimidos, sempre. 

Um pouco, Chico morreu e deixou-nos guardiões dos versos de dizer que “apesar de você amanhã há de ser outro dia”. Apesar dos ditaduros e mentirosos, apesar dos oportunistas e vira casacas, apesar da rasteira dos entreguistas, capachudos e pelegos, os ciclos se alternam: pois não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe.

Morreu, um pouco, o Chico da dolorosa poesia da “Construção” que mata em nome das opressoras muralhas engendradas na arquitetura de consumo: seja na Beira Mar norte, seja na Boa Viagem, cujo grande mercê foi barrar a aragem que afagava a Recife dos oprimidos.

Morreu um pouco o poeta da carta ao “Meu Caro Amigo”, alertando que “a coisa aqui tá preta”. São as intrigas, os imbróglios, os bate-bocas estéreis, as artimanhas, as perseguições – de um lado. De outro – o silêncio desalentado e desprezível dos acomodados no democratismo roto do vote-em-mim-que-eu-cuido-do-resto. Um ciclo democrático dos que rangem os dentes, mas não se rebelam. A democracia da geração cara-pintada envelhecida: um punhadão de urbanóides de ilusória ascensão financeira, crentes da bolsa-família e das urdições salariais travestidas em rubricas. Esta, uma geração que tem horror à movimentação de massa, crente nos webs, nos sites, nos blogs por meio dos quais range os dentes e vomita sua ira sem sair do lugar. Caravanas aos estádios para fazer explodir o peito com o time nele tatuado, sim! Caravanas a Brasília para expulsar as ratazanas da casa do povo, nem pensar! Em vão clama o poeta “semeia o vento e bebe a tempestade”. Gente oprimida, esta, e nem desconfia.

Ah, meus caros amigos – o poeta morreu, porque aqui todos fingem não haver mais oprimidos. Apenas um grande teatro insensível e vazio de idéiasd+ cheio, contudo, de imbecis sequiosos por apalpar o corpo marombado do galã ou a bunda da sex appeal da hora. Estes, o produto do nefasto laboratório BBB, embalados para viagens às índias, às arábias, ao cartão postal carioca. Malgrado a aparente assepsia, não conseguem disfarçar seu êxtase narcísico, nem o cheiro do álcool, nem o cheiro do pó. 

O teatro está vazio, as praças estão vazias de todos os loucos por dinheiro e cheios do pânico despejado pelo último surto noticioso. Silvam pelos ares as balas perdidas e os únicos a salvo são os ratos do Congresso e os sagrados ministros do Judiciário – instâncias que não creem na existência de oprimidos

Então, Chico morreu um pouco, sim, na morte do amigo que transformara a praça em mundo para o encontro dos oprimidos. Cartas, a quem escrevê-las? A quem mandar lembranças se você morreu AUGUSTO BOAL?