Estado paga o dobro do salário do setor privado

A política de recuperação do valor dos salários dos servidores federais aumentou a diferença entre o salário médio destes funcionários e a remuneração dos trabalhadores no setor privado. O salário dos servidores federais estatutários, aqueles com direito aos benefícios do regime jurídico único da União, como estabilidade no emprego e aposentadoria integral, superou em 101,3% o ganho dos funcionários da iniciativa privada em 2008. Em 2002, antes do governo Lula, a diferença era de 78,9%, segundo cálculos do professor Nelson Marconi, da FGV, com base nos microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.

A política de aumento salarial veio acompanhada de intensa abertura de postos de trabalho na administração federal. Nas duas gestões de Lula, foram quase 150 mil novas vagas. Assim, centenas de concursos acirraram a disputa por uma oportunidade no setor público. Como atrativo, além do salário, estão a estabilidade e a aposentadoria integral.

Várias funções, consideradas estratégicas, tem salários iniciais superiores a R$ 12 mil. Um advogado-geral da União começa recebendo R$ 14,5 mil, enquanto um analista do Banco Central tem remuneração inicial de R$ 12,4 mil e um auditor da Receita Federal, de R$ 13 mil. Embora a comparação com o setor privado seja difícil, pesquisas indicam que o salário médio de um gerente financeiro no setor privado é hoje de R$ 5,3 mil. As diferenças salariais explicam porque, em recente concurso para a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), havia 399 candidatos por vaga.

A secretária em exercício de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento, Maria do Socorro Mendes Gomes, diz que os salários de ingresso precisam ser altos para atrair e reter a mão de obra qualificada. “Não há Estado Nacional no mundo que tenha fortalecido sua inserção internacional, seja na política, seja na economia, sem ter uma boa estruturação de quadros qualificados. E isso não vem de graça.”

O salário dos servidores federais estatutários, aqueles com direito aos benefícios do regime jurídico único (RJU) da União, como estabilidade no emprego e aposentadoria integral, superou em 101,3% o ganho dos funcionários da iniciativa privada em 2008. De acordo com cálculos baseados na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), elaborados pelo professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Nelson Marconi, a mesma comparação, que leva em conta variáveis como gênero, raça, anos de estudo e área de atuação, mostra que em 1993 a diferença salarial era de 51,4% e, em 2002, no fim da administração Fernando Henrique Cardoso (PSDB), foi de 78,9%.

Os dados, diz Marconi, ex-diretor de carreiras do governo FHC, refletem a “pesada” política de aumento de salários do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que elevou em mais de 40% (em termos reais) as despesas com pessoal da União entre 2003 e 2008. “Os funcionários públicos são uma base de sustentação política muito forte. O presidente Lula já se indispôs com eles no primeiro ano do mandato com a reforma da Previdência. Ele tinha que reverter isso, e a estratégia foi conceder aumentos.”

O acadêmico lembra ainda que o governo também autorizou os reajustes com a justificativa de que precisava equiparar a remuneração do Poder Executivo com os rendimentos do Legislativo e do Judiciário, além de sofrer pressão do movimento sindical. “Os sindicatos pensaram: “Não sei quem será o próximo presidente, então é melhor aproveitar a porteira aberta agora”. A estratégia é considerada um acerto e ninguém questiona, porque a arrecadação real cresceu acima dos aumentos, mas quando as receitas caem os salários não acompanham, causando problemas para as contas públicas”, avalia Marconi, que também dá aula na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo.

Uma abordagem mais concentrada dos dados da Pnad mostra que o salário médio real dos servidores federais estatutários passou de R$ 3.599 no fim de 2002 para R$ 4.171 no ano passado, enquanto o ganho médio de funcionários da iniciativa privada com carteira assinada – exceto domésticos – variou de R$ 974 para R$ 983 no mesmo período. Segundo Marconi, a distorção entre os rendimentos indica erro na condução da política de gestão de recursos humanos da administração Lula. “O setor privado se ajusta melhor à realidade e ao nível de produção e renda do país, e a atividade produtiva tem que ser mais importante para a economia do que a atividade do setor público, que deve ser atrativo e competitivo, mas não pode ser uma tábua de salvação.”

Na opinião do economista Anselmo Luis dos Santos, professor do Centro de Estudos Sindicais da Universidade Estadual de Campinas (Cesit-Unicamp), as elevações salariais no funcionalismo federal se justificam pela maior demanda por serviços públicos e pela desigualdade do mercado de trabalho privado brasileiro. “Pela média salarial, os profissionais do setor financeiro recebem bem mais que os trabalhadores da agricultura. E daí? Isso é um preconceito de quem ganha bem na iniciativa privada e não utiliza o serviço público. Como melhorar a segurança ou a saúde sem remunerar bem os profissionais?”, questiona Santos, reforçando que a maioria da população trabalha no setor privado, “mercado marcado por profunda desigualdade, além de algumas áreas mais organizadas puxarem a média salarial para cima, enquanto as categorias mais fragilizadas vão continuar pesando para piorar a comparação”, associa.

A onda de aumentos veio acompanhada de intensa abertura de postos de trabalho na administração federal. Em meio às expectativas da corrida eleitoral de 2010, o governo Lula vai iniciar seu último ano com a marca de ter autorizado a abertura de quase 150 mil vagas nas várias áreas do funcionalismo federal e contratado, efetivamente, mais de 107 mil servidores entre o começo do mandato, em 2003, e agosto de 2009. Centenas de concursos acirraram a disputa por uma oportunidade no setor público, deixando a iniciativa privada como segunda opção para milhões de brasileiros. Como atrativo, além do salário, estão a estabilidade e a aposentadoria integral.

Este ano, por exemplo, a Cespe, entidade da Universidade de Brasília (UnB) que organiza essas provas, contabiliza inscrição de 98.692 pessoas para concorrer a 247 vagas de analistas e técnicos (níveis superior e médio) da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). A extraordinária média de 399,5 candidatos por vaga está diretamente relacionada com a remuneração inicial, que varia de R$ 2.068,98 a R$ 8.955,20. O salário final e, geralmente, valor da aposentadoria para essas carreiras, vai de R$ 2.377,73 a R$ 15.720. Na iniciativa privada, o valor médio da remuneração de um gerente de telecomunicações, conforme pesquisa semanal do Datafolha, é de R$ 9.325.

Rogerio Neiva Pinheiro, juiz do trabalho do Distrito Federal e professor de cursinhos preparatórios, diz que o salário elevado é um indicativo de renovação da máquina pública com quadros mais qualificados. “Passar no concurso hoje é mais difícil que ser contratado por uma multinacional. Ao entrar no Estado, dificilmente o aprovado será um mero batedor de carimbo. Temos hoje um novo cenário de funcionalismo público”, opina o magistrado, que está no topo da cadeia salarial do poder público, com rendimento superior a R$ 25 mil.

Segundo Pinheiro, a sociedade espera eficiência do Estado. “Há 30 anos era impensável falar em “processômetro”, um conceito que hoje estabelece metas ao Judiciário para evitar acúmulo de processos. Se, num mês, entram 200 ações na minha vara e eu resolvo cem, quer dizer que estou gerando uma taxa de congestionamento. Se o cidadão não gostar, ele pode bater na ouvidoria, corregedoria, no CNJ [Conselho Nacional de Justiça] e cobrar eficiência.” Pela lógica, altos salários atraem as principais cabeças. Não basta ser “bom de concurso” para ter garantida a passagem para a máquina pública. Mestrado, doutorado, experiência internacional e tempo de trabalho na iniciativa privada contam pontos nos processos seletivos.

O “head hunter” Fábio Salomon, da área jurídica da consultoria de recursos humanos Michael Page (MP), reconhece que, em termos de salário inicial, é difícil a iniciativa privada competir com o setor público. “Um bom garoto, com MBA, que está começando num escritório de grande porte, não vai receber mais que R$ 3 mil. A partir do salário inicial dá para perceber um erro dos concursos: é muito complicado um profissional tão jovem assumir um posto de juiz para receber, de cara, R$ 14 mil. Tecnicamente ele pode ter estofo, mas será que tem vivência, conhece a realidade do mercado e do setor público?”, pergunta Salomon.

Levantamento de cargos e salários feito pela MP a pedido do Valor revela que a diferença salarial público-privado se concentra na remuneração inicial e é diluída ao longo da carreira. Por exemplo: enquanto um auditor da Receita Federal, um dos cargos mais concorridos do funcionalismo, começa a vida profissional ganhando R$ 13.067 e tem remuneração final de R$ 18.260, um gestor tributário de uma empresa de médio ou grande porte pode ter rendimento mensal entre R$ 15 mil e R$ 20 mil com até dez anos de trabalho, sem contar os bônus que variam de dois a três salários por ano. Um diretor tributário, cargo identificado pela MP em menos de 50 empresas no país, pode faturar, em média, cerca de R$ 40 mil/mês.

Segundo Marconi, da FGV, só uma nova reforma previdenciária poderia resolver a distorção entre salários iniciais e finais no Executivo. “A valorização salarial ficou só em uma ponta inicial, pois o governo não tem dinheiro para bancar a aposentadoria dos servidores se der reajustes no fim da carreira. Isso revela um grave problema de estrutura de desenvolvimento de carreiras. O salário não precisava ser tão alto no começo para poder ser maior no fim.”

É necessário, continua Marconi, investir no planejamento da força de trabalho e cobrança de resultados dos mais de 1 milhão de servidores federais. “O governo tem que parar de ficar discutindo se tem pouco ou muito servidor, como martela o Ipea, e pensar assim: essa área faz isso e gere desta forma. Quantos servidores precisamos e com qual perfil? A partir da resposta, preparam-se os profissionais e cobram-se resultados. Isso o governo federal nunca fez, nem na minha época nem agora.”

Carreira de gestor público atrai candidatos qualificados

Criada no âmbito do governo federal no fim dos anos 1980, a carreira do especialista em políticas públicas e gestão governamental, ou só gestor de políticas públicas, representa, na visão de especialistas, um avanço no modelo de recursos humanos e de modernização da administração pública brasileira.

Formada hoje por um pelotão de elite, com 896 profissionais com as mais variadas formações e elevada qualificação acadêmica e profissional, a função nasceu para auxiliar decisões estratégicas de governo, propor políticas governamentais e assessorar as principais autoridades do país. Esses servidores estão espalhados por vários ministérios e autarquias federais e são protagonistas em projetos importantes, como a recente renovação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), por exemplo.

O advogado Daniel Colombo, de 28 anos, passou, em 2008, no concurso para o cargo de gestor público federal. Foi empossado em novembro e, antes de começar as atividades, frequentou curso de 600 horas na Escola Nacional de Administração Pública (Enap), ganhando uma bolsa e não o salário total da função. Com títulos de graduação e mestrado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e experiência profissional de cinco anos num grande escritório de advocacia, inclusive com passagem pelo exterior, Colombo abriu mão da promissora carreira na iniciativa privada atraído pela “transversalidade e interdisciplinariedade” do cargo de gestor público. O visado salário inicial de R$ 12.413,65 (final de R$ 17.347,00) também foi levado em conta, mas não foi o principal.

“O trabalho de gestor me permite aplicar o conhecimento jurídico para botar a mão em políticas públicas, ter a possibilidade de fazer a diferença”, destaca Colombo. Após concluir a preparação na Enap, ele foi indicado para o Ministério da Saúde, onde realizou um trabalho de assessoria política e começou a colaborar com um projeto de isenção fiscal para hospitais privados e contrapartidas para a rede pública de saúde. Atuou por poucos meses no ministério e foi indicado para coordenar cursos de especialização na Enap.

“Nos definimos como generalistas. Não consigo fazer analogia com o setor privado. Somos uma parcela da burocracia muito treinada e especializada, com forte conhecimento teórico e prático dentro da administração”, afirma Colombo.