A lição da Novembrada a propósito de comentários vertidos contra autoridades da UFSC, da Apufsc e do CFH

Parabéns para os alunos do curso de Ciências Sociais que tiveram a iniciativa de organizar o evento “UFSC – Novembrada 30 anos”, no Centro de Filosofia e Ciências Humanas, nos dias 23 e 24 de novembro. A Novembrada não é um episodio qualquer da historia de Florianópolis, sua importância histórica, local e nacional, não pode ficar diluída nas lembranças pessoais de seus autores. A Novembrada é um fato político complexo e rico em ensinamentos que não perderam atualidade apesar dos anos transcorridos.

Por acaso, antes de assistir a ultima parte de uma das mesas do evento mencionado, integrada pelos  professores Luís Felipe Miguel e Remy Fontana e o jornalista Moacir Pereira, tinha lido uma matéria no Boletim da Apufsc-Sindical (nº 701, 23/11/2009), cujo autor chamava a atenção, com verbo inflamado, para um suposto processo de “direitização” que estaria acontecendo na UFSC, em geral, e também na Apufsc e no CFH, em particular. Foi sorte minha ter assistido a essa excelente mesa, alguns dos elementos vertidos pelos expositores me ajudaram a pensar o que gostaria chamar “A lição da Novembrada”, dirigida ao autor da crítica acerba às autoridades das principais instituições de minha vida universitária. Claro que não faço aos palestrantes da mesa responsáveis pela reflexão que segue, apenas pela inspiração.

De fato, eu tinha lido pouco a respeito da Novembrada e na minha compreensão tratava-se de um protesto de estudantes contra a ditadura militar que, frente à reação inusitada do Presidente Figueiredo – de “não querer levar desaforo para casa” –, alcançou uma repercussão nacional inesperada. Mas escutando aos palestrantes descobri que a Novembrada foi o que foi porque uma serie de atores e setores sociais diversos convergiram na ação sem um plano prévio ou premeditado, provocando assim um acontecimento que transcenderia qualquer expectativa inicial dos mesmos. De uma longínqua e pacata província brasileira foi emitida uma mensagem que se alastraria pelo território produzindo sinergia política na direção do que depois seria conhecido como “Diretas Já”.

A Novembrada não teve dono, nem foi dirigida por uma ideologia coerente, foi expressão de uma consciência coletiva que se colocava por cima das diferenças que existiam entre os diversos setores da comunidade local. A convergência dessas diferenças numa ação concreta contra a ditadura surpreendeu a todos por igual. Não é possível imaginar diante dos acontecimentos que houvesse somente uma causa e uma ideologia motivando aqueles que, direta ou indiretamente, participaram da Novembrada, 30 anos atrás.

O estopim da Novembrada pode ter sido a revolta estudantil, mas sua ação teria sido bem diferente em qualquer outro contexto. A força da Novembrada derivou da sinergia de seus atores para se posicionar contra o autoritarismo do governo militar no presente, assim como também contra outro autoritarismo do passado, o do Marechal Floriano Peixoto, a quem o Presidente Figueiredo tinha se associado na sua vinda à cidade, ao pretender render-lhe uma homenagem. Na Novembrada se misturaram atores e setores que se situavam dentro de um amplo espectro, incluindo aqueles com idéias e sentimentos de antiga raiz conservadora que  tinham sido afetados pelo radicalismo dos positivistas e racionalistas – que inauguraram a Republica no Brasil fuzilando centenas na Ilha do Desterro e, posteriormente, degolando milhares em Canudos – junto a outros com sentimentos esquerdistas herdados de uma historia revolucionária mais recente, portanto colocados ideologicamente no extremo oposto. A força da Novembrada residiu nessa mistura, talvez impossível de acontecer em outra circunstância, numa singularidade fruto de uma rica pluralidade de motivações e atores apontando na direção da democracia.

A Novembrada, enquanto evento, ainda que numa escala histórica obviamente menor, possui a mesma singularidade estonteante da derrubada do Muro de Berlim, do qual recentemente festejamos seus 20 anos. Dou este exemplo, em particular, porque o autor da nota publicada no Boletim da Apufsc-Sindical deu sinais no seu artigo para interpretar a esse fato também como um evento conservador ou de direita. Se for assim estaria errado. A queda do Muro de Berlim foi preparada pelas forças que lutaram contra o totalitarismo comunista, claro. Mas independentemente de como sejam classificadas essas forças (liberais, conservadoras, whatever), no evento concreto da derrubada participaram positivamente atores e setores que vinham de todos os lados do espectro político, tanto um Gorbachev e os eurocomunistas, que queriam salvar o comunismo, como os liberais americanos, que queriam exatamente o contrário, passando por cidadãos alemães, de ambos os lados do Muro, que só queriam mais democracia.

Ver conservadorismo e direitismo por todos os lados nem sempre é fruto da realidade, mas da lente com a qual se observa a mesma. A democracia não tem sinal, por definição ela não é de esquerda, nem de direita. Aqueles que sim podem ser de esquerda ou de direita são os atores que disputam o poder político em seu interior, mas a pretensão de associar a democracia a uma determinada ideologia acaba com a democracia e instaura o autoritarismo no ato. Esta não é uma afirmação teórica em disputa com outras, é um fato histórico. Acredito que existe uma explicação para a confusão que leva alguns a pensar que todos os eventos e circunstancias da vida política são fruto da lógica aristotélica do terceiro excluído, devendo ser de um sinal ou de outro de forma excludente, não existindo qualquer dialética que permita em determinados momentos a convergência de atores de sinais opostos. A história não se constitui unicamente a partir de uma dinâmica linear orientada por uma mesma idéia ou ideologia, circulando pela cabeça de um mesmo autor – tal como imaginava Marx com relação à luta de classes do proletariado, por exemplo. Isso parece muito mais um fundamentalismo ideológico do que o resultado de uma análise histórica e sociológica.

Na historia podem existir movimentos pautados por objetivos ideológicos claramente definidos, que são perseguidos quase da mesma forma em qualquer tempo e lugar, mas não são os únicos. Existem outros movimentos que, a rigor não são estritamente tais, senão contra-movimentos, onde a ideologia importa pouco e o fundamental não é tanto o objetivo ideológico, mas alcançar um maior patamar de liberdade para o convívio entre os indivíduos, aumentando assim a capacidade humana de agir em conjunto de forma criativa. Esses contra-movimentos são essencialmente plurais e democráticos e não são conduzidos por nenhum ator privilegiado. Eles produzem eventos como a Novembrada e a derrubada do Muro de Berlim, entre outros.

Mesmo as revoluções podem ser interpretadas como contra-movimentos desse tipo. O sentido das coisas às vezes se perde com o tempo, lembremos assim que o significado do termo “revolução” inicialmente foi extraído do vocabulário da astronomia, onde definia o périplo completo de um astro em redor de outro. Na verdade, revolução significava uma visão muito mais restauradora que inovadora, na sua origem semântica. O sectarismo ameaça sempre aos processos revolucionários, mas os ameaça muito mais depois do que antes dos revolucionários chegarem ao poder. Até porque, os processos revolucionários precisam somar as forças dispersas da sociedade, para terem sucesso. Os jacobinos e os bolcheviques circulavam no interior das revoluções francesa e russa prometendo mais liberdade. O terror veio depois, quando eles assumiram o controle ditatorial do poder, exterminando vidas e promessas. Não aconteceu o mesmo com a Revolução Americana porque, precisamente, lá foi preservada a democracia. Em outras palavras, os chamados movimentos históricos que lutam pela ampliação da liberdade são, a rigor, contra-movimentos. Eles são movimentos defensivos contra aqueles que lhes expropriaram direitos e liberdades de forma autoritária, mais que por ideologias precisas, eles são guiados por sentimentos comuns, por uma consciência comum de liberdade contra o despotismo.

Mas o que foi falado para uma escala macro, se aplica também a escalas menores, como seria o caso dos movimentos de opinião que circulam no interior das instituições, como é o caso da UFSC e da Apufsc. Sem tanta grandiosidade, aqui também se tentaram impor modelos claramente definidos, atores com idéias claras e coerentes tentaram ocupar as instituições para desenvolver projetos sem contradições nem concessões para aqueles que não pensassem igual. Pense o leitor no destino de uma instituição conduzida pela ideologia que permeia o texto “A direitização na UFSC e a função do CFH”! A pureza ideológica exigida aí é tão feroz e completa que nada ficou de fora, todos caíram na sua rede crítica, não foram poupados ataques nem sequer para a direção do CFH, cuja diretora foi acusada de cumprimentar em publico de forma excessivamente gentil às autoridades da universidade!

Pois bem, foi essa ideologia que foi derrotada na última eleição para Reitor na UFSC, assim como nas últimas assembléias da Apufsc, quando decidiu-se sair da Andes. Claro que nem todos os que votaram a favor dessa ideologia naquelas instancias podem ser associados a atitudes tão extremas quanto as manifestas no artigo comentado. Mas o que deve ser destacado aqui é que, tanto na UFSC, como na Apufsc, a maioria votou contra atores portadores de purismos ou fundamentalismos de esquerda. Foram contra-movimentos defensivos e pluralistas, integrados por pessoas que se identificam tanto com expressões de esquerda, como de direita, os que levaram o professor Prata à reitoria e o professor Lisboa ao sindicato.

Talvez eu seja um dos poucos na nossa comunidade que, tendo um passado na esquerda, manifesta em público sua simpatia por alguns autores e valores do pensamento conservador – alias, sempre que dou aula sobre o pensamento político conservador, clássico ou contemporâneo, aparece um grupo de alunos que saem estranhados da sala me dizendo que não sabiam que eram conservadores, o qual sempre me pareceu não apenas uma prova do desconhecimento que existe a respeito desse pensamento, mas também de sua vitalidade. Mas aclaro, o pensamento conservador é uma coisa, e a militância conservadora é outra. Não sou militante, em minha opinião, pelo menos no Brasil, os militantes conservadores tem pouco a estranhar dos militantes de esquerda. Acho que um depoimento pessoal ajudaria talvez a fechar melhor este texto.

Existem pesquisas que mostram que quase todos os membros da classe política brasileira se identificam hoje com o pensamento de esquerda. A luta pela presidência em 2010 será entre candidatos de esquerda. Seja a Dilma ou o Serra, o Ciro ou a Marina, todos se declaram dentro de alguma variante da esquerda, nenhum candidato é de direita. O que significa isso? Apesar das mentes conspirativas de sempre, não se trata aqui de imaginar que alguém esteja ocultando sua verdadeira identidade. Acontece que no Brasil a identidade de direita se diluiu, quase todo o mundo agora é de esquerda! No entanto, a história está cheia de armadilhas. As pessoas são educadas na modernidade para acreditar que elas fazem escolhas definitivas, que tomam decisões apuradas e racionais de forma autônoma, quando em realidade nem sempre é isso que acontece no campo da política. Se irmãos trigêmeos tivessem nascido no início do século XX, na época do apogeu das ideologias políticas, e fossem separados e enviados para países diferentes, após algumas décadas poderiam perfeitamente fazer uma reunião de família e descobrir que o enviado para Alemanha tinha virado nazista, o enviado para a União Soviética, comunista, e o enviado para os Estados Unidos, liberal. O exemplo é para que o leitor perceba o peso terrível das ideologias. Felizmente a humanidade está superando essa fase e cada vez as ideologias se tornam menos atrativas. Mas elas ainda aparecem para nos confundir.

Pedindo uma licença sociológica eu diria que a pior ideologia é sempre a dominante, não importa qual seja. Na minha juventude, na Argentina, o pensamento de esquerda não era dominante. Nos debates e lutas políticas internas das universidades, sindicatos ou favelas era comum escutar a acusação de “zurdo” (esquerdista) ou “bolche” (bolchevique) para desqualificar ao outro. Nos Estados Unidos, com o macarthismo, a acusação de esquerdismo podia até dar cadeia por traição à pátria! Hoje tudo mudou. Felizmente, passou a ser uma peça de museu a acusação de “esquerdista” para desqualificar ao oponente, isso vale no Brasil, tanto como na America Latina e nos Estados Unidos, que tem hoje um presidente com o qual o Senador Joseph McCarthy faria uma festa no passado.

Mas a história nos coloca às vezes no lugar de Sísifo, quando acreditamos que alguma perversão foi derrotada, outra semelhante aparece que nos faz lembrar à anterior. Essa acusação de “direitização” da UFSC, da Apufsc e até do CFH me fez lembrar aqueles anos. Claro que hoje estamos num contexto onde é politicamente incorreto ser de direita e de bom senso ser de esquerda, por isso ainda não caiu totalmente a ficha do que seria o macarthismo hoje, por conta da inversão de sua ideologia de base. No caso que nos ocupa, parece não preocupar ao autor do artigo se as pessoas acusadas como responsáveis pela “direitização” se identificam realmente com a esquerda ou com a direita, o que mais lhe importou foi definir claramente uma retórica macarthista. Da forma como foram colocados os comentários sobre os professores Prata, Lisboa e Neckel, ficou claro para mim que o alvo não era tanto criticar diversos aspectos de suas gestões, seja do ponto de vista acadêmico, administrativo ou sindical, mas carregar a suas gestões com o mote da “direitização”, com a intenção evidente de desmoralizar-los frente a uma comunidade onde a ideologia de esquerda se supõe dominante, ao igual que no resto do Brasil.

Confesso que escrever este texto me fez sentir um pouco mais velho, nunca imaginei que minha vida passaria por uma revolução completa, astronomicamente falando, ao ponto de voltar a presenciar em uma universidade atos macarthistas, agora de esquerda, com a intenção de desqualificar o trabalho serio e duro das pessoas que estão cuidando de nossas instituições: a UFSC, a Apufsc e o CFH. A todos eles envio minha solidariedade e apoio. A lição da Novembrada está ai para dizer-lhes que, se sabemos manter-nos plurais, estruturando democraticamente as instituições de modo respeitoso para as nossas diferenças e méritos, assim como para os dispositivos legais em vigor, o futuro estará sempre de nosso lado.