Considerações sobre o pensamento de esquerda e de direita na UFSC

O autor do artigo “A lição da Novembrada a propósito de comentários vertidos contra autoridades da UFSC, Apufsc e do CFH”, publicado no Boletim da Associação dos Professores da UFSC em 30.11.2009, abarca uma gama de assuntos tão variados que mais parece ir da decadência do Império Romano à derrota do Pentágono no Iraque. Apesar de o artigo não ter foco e de o autor escrever como fala, mesmo sendo professor, vou me ater ao tema que levantei sobre esquerda e direita na universidade.

As políticas neoliberais, implantadas pela força na maioria dos países latino-americanos a partir da década de 1970, tinham como objetivo fundamental derrotar o  Estado nacional-popular. O esgotamento dos anos dourados da economia keynesiana do pós-guerra levou o capitalismo internacional a impor, na sua periferia, um programa, mais tarde chamado de Consenso de Washington, que buscava uma reanimação sistêmica à custa da espoliação dos países pobres. A privatização de grande parte de nossas empresas estatais, montadas com recursos públicos ao longo de quase um século, constituiu-se em um dos escândalos mais conhecidos deste período.

Toda esta rapinagem histórica foi realizada com o auxílio das ditaduras de segurança nacional que prepararam os caminhos para que o neoliberalismo pudesse avançar sem grandes obstáculos. As oposições foram aniquiladas, os partidos políticos extintos e o Estado de terror decretado. Só a ditadura argentina matou cerca de 30.000 pessoas, sem contar os exilados. Coube às Mães da Praça de Maio o duro enfrentamento aos generais genocidas. Muitas delas foram presas, outras torturadas e algumas mortas. Esse grupo de mulheres, com seus lenços brancos na cabeça, derrotou o mais atroz de todos os regimes autoritários da América Latina – as loucas da Praça de Maio, como as denominou o presidente de plantão Jorge Videla.

Os intelectuais, na sua grande maioria, não apenas abandonaram os seus países com suas ditaduras, como também buscaram abrigo em fundações privadas, sujeitando-se aos ditames de trabalho destas instituiçõesd+ outros ingressaram em universidades públicas, abandonando suas bandeiras de luta por um mundo mais justo e mais igualitário, dobrando-se, de forma pusilânime, ao pragmatismo vencedor. Categorias como “imperialismo”, “socialismo”, “dependência”, “revolução” e “poder popular” foram substituídas por “países centrais”, “social-democracia”, “interdependência”, “reformismo”, “participação popular”, e os conceitos de esquerda e direita abandonados em favor da “terceira via”, que nada mais foi que uma “nova direita” travestida com a ideologia neoliberal. “Más de lo mismo”, diria o espanhol. A primeira crise do capitalismo deixou os filhos de Anthony Giddens completamente órfãos, tanto que os estudantes já não o conhecem, pois dele não se fala mais. Foi moda e prestou relevantes serviços à “nova direita”, que, uma vez no poder, realizou sua função primordial, qual seja, controlar o mecanismo estatal para promover a acumulação de riquezas em favor do capital internacional. Aliás, é comum ver professores pautarem seus temas de estudo pelo critério da moda. Seguramente são contemplados, com mais facilidade, com bolsas dos órgãos de fomento de pesquisa1.

Nesse contexto, afirmar que esquerda e direita são realidades inexistentes, que a democracia é neutra e que o determinismo histórico fará do ser humano ou um nazista, ou um comunista, ou um liberal – dependendo do espaço geográfico em que tenha nascido – soa ridículo na boca de um professor. A democracia precisa ser caracterizada para ser avaliada. Ela pode, por exemplo, ser representativa ou participativa, capitalista ou socialista, restringida, limitada e de segurança nacional, como o foi a da ditadura militar brasileira. E as consequências imediatas deste regime de 1964 estão à mostra de todos, como o atrelamento da economia aos interesses estadunidenses e a prática do terror de Estado. Por acaso não tem ideologia tais tipos de democracia? Um dos seus patrocinadores foi o presidente Ronald Reagan, na década de 1980, ao exigir a retirada dos militares dos governos, pois alguns deles haviam se tornado nacionalistas, e ao pedir a volta de civis,  já que muitos deles tinham abraçado a ideologia neoliberal.

Os defensores da tese de que não existe mais diferenciação entre esquerda e direita atuam de maneira conservadora desde a macropolítica, ao assumir, por exemplo, um programa e uma candidatura à reitoria que represente os interesses do mercado, do poder econômico e das classes dominantes, às pequenas atitudes, como conceder espaços distintos em salas de aula quando candidatos de direita e de esquerda aparecem para apresentar suas ideias. Chegam ao absurdo de não permitir que os estudantes leiam na própria sala os programas de esquerda e estimulam o conhecimento dos de direita. Ali, para esses professores aparece empiricamente a distinção entre esquerda e direita.

No entanto, as grandes diferenciações entre esquerda e direita, na UFSC, surgem nas disputas eleitorais para a reitoria, direções de unidades, representantes junto ao Conselho Universitário, diretorias de sindicatos e centros acadêmicos de estudantes. Dois projetos de universidade se enfrentam, um baseado em valores elitistas, meritocráticos e voltado inteiramente para o mercado, e o outro de cunho popular, nacional e orientado para o bem comum de sua população. Enquanto em um mesmo centro de ensino, por exemplo, um grupo de pesquisa se dedica a aprimorar tecnologia para produzir um jet sky  que  desenvolva mais velocidade e mais competição nas belas águas do Jurerê Internacional, outro procura criar módulos consistentes e baratos para a construção de casas populares na periferia de Florianópolis. Dois projetos de uma mesma universidade atendendo classes sociais distintas. São, por acaso, neutras tais pesquisas?

As eleições para a reitoria da UFSC têm se caracterizado por um embate entre um programa de esquerda e outro de direita. Enquanto alguns defendem que a universidade ajude a construir um Estado soberano com um projeto nacional-desenvolvimentista e de bem-estar sociald+ que as pesquisas feitas e as riquezas conquistadas sejam distribuídas equitativamente entre sua população, atendendo prioritariamente os mais necessitadosd+ que os impostos cobrados e as fortunas taxadas melhorem o índice de desenvolvimento humano de seu povod+ que o público prevaleça sobre o privadod+ que a democracia passe de representativa para participativad+ que os trabalhadores possam se organizar de maneira livre, autônoma e independented+ e que a solidariedade seja um objetivo nacionald+ por sua vez, outros advogam a ideia de um Estado mínimo e internacionalizadod+ defendem que os resultados das pesquisas sejam apropriados por quem as financiou e que a meritocracia premie o indivíduod+ que a busca do lucro e do enriquecimento não sofra limitesd+ que a democracia seja tão somente representativa nos órgãos colegiadosd+ que os trabalhadores tenham contratos particulares e que o individualismo seja o grande valor axiológico. Alguns, provavelmente, fãs da escritora Ayn Rand, proponente do “egoísmo racional”. Tão claro é este embate que o governo do Estado e as empresas catarinenses – para citar apenas os poderes político e econômico – não só acompanham a eleição para reitor, como também interferem nela.  Por isso, tem razão o professor de ética e filosofia política da Unicamp Roberto Romano quando afirma que se “o reitor traz para o interior da instituição universitária os interesses dos comprometidos de modo imediato com o poder (como no caso das oligarquias, do mercado, das grandes forças econômicas) ele é nocivo à universidade”2.

Dentro desse contexto, é verdade que meus candidatos de esquerda perderam a disputa não apenas para a Reitoria e a Apufsc, mas também para a Câmara Municipal, Assembleia Legislativa e Câmara Federal. Aliás, não tenho nenhum constrangimento em perder tanto, pois envergonhado estaria se tivesse sido vitorioso com determinadas pessoas. Darcy Ribeiro dizia que havia fracassado em tudo o que havia tentado na vida. “Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”3. Não é presunção minha, pois não tentei tanta coisa como o grande Darcy, mas em relação ao autor do artigo “A lição da Novembrada …”  prefiro perder com os meus candidatos a ser vitorioso com os dele.

Por fim, fazer a crítica fundada a quem ocupa funções públicas é um dever nosso e jamais uma falta de respeito. Quando houve a censura ao livro “O terrorismo de Estado na Colômbia”, por parte da Editora da UFSC, não apenas tive uma longa audiência com o reitor para tratar do tema, como também sugeri a ele mudanças no Conselho Editorial para que tal fato não mais ocorresse, seja com um livro que faça uma análise progressista, seja com uma obra conservadora. No entanto, a cordialidade do encontro não me tira o direito de criticá-lo, já que o faço pelo bem da instituição. Penso que nocivos e desrespeituosos para com as entidades e autoridades são aqueles que se calam ou elogiam com o único objetivo de obter vantagens e cargos. Max Weber já chamava a atenção para “a existência de tantos medíocres nos postos importantes das universidades, fato de que não há nenhuma dúvida”4.

O autor do artigo “A lição da Novembrada …”, professor Héctor Ricardo Leis, sabe muito bem a diferença entre esquerda e direita, tanto que já deve ter publicado algo no site do Instituto Liberal e nada no do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Sobre macarthismo ele também tem seus conhecimentos, pois não apenas fez um curso de uma semana promovido pela Embaixada dos Estados Unidos, em Belo Horizonte, com todas as despesas pagas por aquela entidade, desde passagens até diárias, como também recebeu livros, muitos livros de presente, sendo George W. Bush o presidente do país promotor do evento. E essa Embaixada sabe, e muito bem, distinguir o que é ser de esquerda e o que é ser de direita.

Portanto, não é hora de cinismo.