Temos que construir uma ciência tropical

Ele é um dos mais importantes cientistas do mundo. Mas, quando começou a despontar no cenário internacional, as coisas não eram bem assim. Enquanto especialistas ganhavam prêmios Nobel descrevendo características de neurônios isolados, Miguel Nicolelis batalhava para provar que a ciência estava equivocada. De lá pra cá, estimulou bigodes de rato, ensinou macacos a jogar videogame e revolucionou a neurociência, mostrando que os princípios funcionais das populações neurais têm tudo a ver com futebol. Como resultado, seus estudos estão prestes a possibilitar a cura do mal de Parkinson e que paralíticos voltem a andar. Mas ele não se contenta. Arranjou tempo e disposição para instalar no Rio Grande do Norte um projeto que pretende transformar a região numa espécie de Vale do Silício da neurociência, com centros de excelência em atendimento, ensino, pesquisa e desenvolvimento industrial. E quer replicar o modelo pelo País. “Não dá para desperdiçar o talento intelectual de 190 milhões de pessoas.”

Você costuma usar imagens inusitadas, por vezes líricas, para defender seus pontos de vista. Quanto há de poesia na ciência?
A ciência é muito poética. A maioria dos pesquisadores não se sente bem escrevendo de uma maneira mais lírica o que eles fazem. Eu me sinto muito bem. A ciência é uma forma de ler a natureza. Tem gente que lê a natureza com religião, com dinheiro, de várias maneiras. A ciência lê a natureza de um jeito poético. Mas ela usa métodos quantitativos. Não tem muito lero-lero no método científico. O que é proposto tem de ser provado.

Alguém já havia escrito sobre jogadas de futebol na Nature?

Provavelmente não. Essa é uma das revistas em que qualquer cientista sonha publicar artigos. É uma das mais antigas e de mais prestígio na área. Em 2000, me pediram um artigo sobre a interação cérebro-máquina para um dos primeiros encartes da revista acerca do que o futuro da ciência iria trazer. Para ilustrar sobre o que eu falaria, decidi descrever o contexto do estádio Azteca no primeiro gol da final da Copa de 1970. Quando o Rivellino levantou a bola para a área, depois de uma cobrança de lateral de Tostão, a torcida já começou a se levantar. Afinal, na frente de um coitado chamado Fachetti, o defensor italiano, subia um cara chamado Pelé. Do outro lado do estádio a torcida deve ter visto a cara de desespero do goleiro Albertosi. Com a bola ainda viajando para a cabeça de Pelé, a torcida já estava de pé. É isso também o que o cérebro faz: planeja o movimento, a ação e também a expectativa do resultado futuro. Ele é o modelador do futuro. Evidentemente, depois dessa introdução, o resto era estritamente científico. Mas fiz questão de escrever para o editor: “Do terceiro parágrafo pra baixo você pode mudar o que quiser. Os dois primeiros são inegociáveis”. E ele publicou.

Você pretende usar imagens como esta nos próximos trabalhos?
Para um artigo que estou preparando agora, vou usar o último gol dessa mesma partida, do Carlos Alberto. É o gol mais impressionante da história do futebol, principalmente por ter sido feito em uma Copa do Mundo. Tostão rouba a bola na área brasileira, passa para o Piazza, que entrega para o Clodoaldo. Clodoaldo dá para o Pelé, que olha para um lado e devolve para o Gérson. Gérson rola para Clodoaldo, ele dribla quatro italianos e entrega para Rivellino que, já  morto de cansaço, passa para o Jairzinho. Jairzinho dribla um cara e, quando vai perder a bola, dá de bico de pé para o Pelé, na porta da área. Um bilhão de pessoas assistindo ao jogo – inclusive eu, ainda moleque – achava que o Pelé iria em direção ao gol. Mas ele para a bola num pé, deixa ela ir para o outro. Olha pra frente. O Tostão aponta, desesperado, que o Carlos Alberto estava passando. Pelé não olha. Há 10 anos ele jogava com o Carlos Albertod+ não precisava vê-lo. O cérebro dele sabia que o Carlos Alberto viria com tudo. E Pelé dá um tapa para a direita na bola, que, por um defeito do gramado, dá uma levantadinha justo no momento do chute. Carlos Alberto pega ela no ar, de chapa. A bola vai feito um foguete para o gol. É um exemplo de como o cérebro funciona. Ninguém explicaria esse gol falando de jogadores individualmente. A jogada é uma propriedade que emergiu da colaboração dos jogadores. Um gol igual nunca vai sair de novo. No cérebro acontece o mesmo. A combinação de como os neurônios participam para gerar um comportamento ocorre muito provavelmente uma só vez na vida.

Os ratos foram importantes para suas pesquisas, não?
Hoje eu não sou mais, mas por 10 anos fui o maior especialista do mundo em estimular bigodes de rato. Claro, tudo cientificamente. Eu era o único que conseguia fazer os ratos ficarem quietos, olhando de frente para mim. Eles possuem 31 vibrissas de cada lado. A gente aparava os bigodes em ângulo, para eu poder acertar cada um deles com a sonda que usávamos. Passei 10 anos da minha vida fazendo isso… Uma vez, na escola do meu filho, a professora perguntou a profissão dos pais. Uma criança falava: “advogado”. A outra: “geólogo”. Quando chegou a vez de meu filho responder, ele não teve dúvida: “neurocirurgião de rato”. Fiquei instantaneamente famoso na escola. A molecada queria saber em que lugar eu tinha estudado para me tornar “neurocirurgião de ratos”.


O que você alcançou com essa especialidade?
O objetivo era aferir qual vibrissa tinha sido estimulada, por meio da atividade elétrica do cérebro dos ratos. E conseguimos. Publiquei o trabalho na revista Science e foi um deus nos acuda. Numa experiência posterior, em vez de por a língua pra pegar água, tinha um bracinho mecânico que buscava água num bebedouro para o rato. No começo ele tinha que fazer isso apertando uma barra com a pata. Depois, ligamos sua atividade cerebral com o braço mecânico e desligamos a barra. Quando ele a apertava, não acontecia nada. Até que, de repente, o bicho chegou à conclusão de que algo estava errado. Parou. Provavelmente pensou. Aí o robozinho foi lá e trouxe a água. Estava realizado o sonho de todo ser humano: ganhar uma recompensa sem esforço algum.

Qual foi a repercussão?
Foi um estardalhaço no mundo inteiro. Mas não paramos. Começamos a treinar a macaca Belle para realizar uma série de movimentos. Num primeiro momento, com um joystickd+ depois sem. Tudo em troca de um suco de laranja, que ela adorava. Um dia deu certo. Belle pensou, a atividade elétrica do cérebro foi registrada, decodificada num algoritmo muito simples e transformada num código digital que disparou o movimento de um braço mecânico. Gosto de dizer que este foi o primeiro momento em que um cérebro de primata se libertou de seu corpo.

A esperteza de uma macaca mudou o rumo da ciência contemporânea?
De certo modo, sim. Quem fechou o ciclo foi a Aurora, que ensinamos a jogar uma espécie de videogame com um joystick. Toda vez que ela acertava um alvo, ganhava uma recompensa. Um dia tiramos o joystick, ligamos a interface cérebro-máquina e ela passou a comandar uma mão robótica que manipulava o joystick em uma outra sala, enquanto via o jogo diante dela, numa tela. Agora ela comandava o jogo apenas com a mente. Ficou uma hora jogando sem se mexer. No momento em que fez isso, Aurora mudou completamente a neurociência.


Daqui a quanto tempo você acredita que essa tecnologia poderá ser utilizada por humanos?
Meses atrás, um robô lá no Japão andou, sem nada a segurá-lo, comandado pela Aurora. O mal de Parkinson e os problemas de locomoção talvez sejam as coisas mais possíveis de serem combatidas num futuro próximo. Trabalhamos num horizonte de 5 a 10 anos. Pode ser mais rápido ainda, dependendo de outras tecnologias. Estamos construindo um consórcio mundial chamado Walk Again (Andar de Novo, em português). A isso eu gostaria de me dedicar nos próximos anos, com grupos na Europa, Estados Unidos e Brasil.


A distância entre o universo científico e a sociedade brasileira te incomoda?
As facuLdades por muito tempo mantiveram a tradição de suas origens, nos mosteiros da Idade Média, dissociadas da realidade. Num país como o nosso, com um potencial humano e natural tão grande, isso é inaceitável. Temos hoje a chance de liderar as indústrias que vão mudar o século 21. Aqui há energia renovável, fitoterápicos, controle do clima, formas sustentáveis de desenvolvimento, produção de alimentos. São as grandes áreas em que o mundo vai se concentrar daqui pra frente. A ciência tem um papel vital nesse processo. As pessoas precisam dominar a ciência a fim de enfrentar questões fundamentais para o futuro da democracia que estamos construindo. Democracia não é só votar de quatro em quatro anos. A política do futuro estará cada vez mais imersa em questões científicas.

Você acredita no potencial da ciência brasileira?
Temos um talento intelectual de 190 milhões de pessoas que não pode ser desperdiçado. Talvez haja milhões de mentes brilhantes que se apaixonariam pela ciência e contribuiriam para a ciência nacional. Se concentramos 70%, 80% da produção científica no estado de São Paulo, estamos alijando dezenas de milhões de mentes que de alguma forma poderiam se transformar em geradores de conhecimento, e não de consumidores de algo pronto. A ciência tem que ser desmistificada como algo que só os eleitos podem fazer. O Brasil está cheio de gente para construir uma ciência tropical. Não seria um modelo norte-americano, um modelo europeu, mas um modelo nosso.

Como está estruturado o Instituto Internacional de Neurociências de Natal, que você  criou?
Atendemos mil crianças de 10 a 15 anos, paralelamente a suas atividades escolares regulares. É um outro conceito de escola. Quando o presidente Lula esteve lá, perguntou a uma das meninas o que ela achava da escola. “Que escola?”, ela respondeu. Além disso, damos atendimento na área médica e formamos um importante centro de pesquisa em neurociência. Isso tudo em Natal e em Macaíba, uma pequena cidade do Rio Grande do Norte, estado que tem a pior rede de ensino público do País. Pretendemos mostrar que a ciência pode ser um importante agente de transformação social.


Como funcionará o chamado Campus do Cérebro?
Ele está sendo construído em Macaíba. Terá 25 laboratórios voltados aos estudos da neurociência e uma escola de ensino regular onde serão atendidos mil estudantes, do berçário ao ensino médio, em período integral e gratuitamente. No futuro, lá teremos graduação e pós-graduação. Trabalhamos também para a criação de um distrito de pesquisa industrial como Palo Alto, na Califórnia. A ideia é gerar o produto final, econômico, da ciência, de tal modo que possa autossustentar e gerir toda essa atividade social e de pesquisa básica. Esse é um quarto nível que ainda não começamos. Brinco que essa seria a demonstração de que o Nordeste pode ser a Califórnia brasileira. Na verdade, acho que, diante das nossas oportunidades, podemos ser muito melhores.

É possível conciliar em sua vida profissional o empreendedorismo social e a alta ciência?
Gosto muito de fazer ciência do jeito que faço. E descobri um outro nicho: mostrar como o método científico e a prática da ciência podem escapar do laboratório e ser usados amplamente pela sociedade. Acredito que as duas coisas podem perfeitamente ser conciliadas. É complicado, dá trabalho, mas ambas vão fazer parte da minha vida até o fim.

Enfim, o que é ser cientista?
As pessoas não costumam compreender isso muito bem, mas ciência não é “Eureka!” todo dia, não é gente andando de jaleco branco com fórmula matemática na cabeça. É uma rotina muito dura, pesada. É uma vida difícil. Mas é algo que em um minuto pode mudar o mundo.