Matéria versus Espírito

A ausência da evidência não significa evidência da ausência (Carl Sagan).

No boletim de 28-05-2012 foi levantada, por um professor, uma polêmica em torno da missa de posse da nova Reitoria da UFSC, que feriu os brios de alguns que professam outra ideologia. No entanto, não vi os mesmos protestos quando na escola pública de Santa Catarina foi adotada a ideologia da religião marxista. Há atrás disto uma lógica ou uma hipocrisia?

Para não perder a viagem o professor, autor do artigo, aproveita para fazer um “descarrego” contra a crença na criação do universo. Afirma que “o creacionismo, teoria que se contrapõe ao darwinismo, é sempre uma consequência do sectarismo e do fanatismo religioso”. Como tem certeza disto?
Na edição de Veja de 22-08-2012 aparece outra manifestação no mesmo sentido, feita pelo psicólogo americano Michael Shermer, com o título “Por que se acredita no inacreditável”. Ele promove sua forma de pensar com frases de efeito, como: 1-“se nos apegássemos apenas ao sobrenatural, nunca teríamos saído da floresta e criado a civilização”. 2-“Espanta-me a arrogância de quem supõe que só uma crença seja correta em meio a tantas” e 3-”Poucos abdicam de crenças sobrenaturais e aceitam a ciência como ferramenta para explicar o universo. Quando se trata de responder a dúvidas primordiais, como a origem do universo ou o sentido da existência, preferem explicações irreais, mas convincentes em suas narrativas fictícias”.
A primeira afirmação é inútil, pois ninguém se agarra apenas ao sobrenatural. A segunda desdenha da inteligência humana. A terceira afirmação é provocativa, por isto discorrerei a respeito.

Mesmo considerando os fantásticos avanços da ciência na elucidação do princípio do universo, não me parece justificar este ufanismo todo com que alguns proclamam suas verdades de base, chegando a debochar de quem pensa ou acredita diferente deles. Como católico apostólico romano, praticante, aceito a teoria da evolução, acompanho e me entusiasmo com as descobertas da ciência, as quais, pelo que até agora me interei, estão longe de emparedar minha fé em Deus criador. A fonte da fé não está e nem pode estar na ciência e tampouco a ciência dispensa suas crenças, esforçando-se ela mesma para prová-las. Mas, mesmo que a fonte de minha fé em Deus não esteja na ciência, aspectos dela, como a crença no Deus criador devem subsistir às investidas da ciência.

Há aproximadamente um ano, quando decidi abordar o presente tema, comecei a ler tudo o que se relacionava com o assunto. Meus conhecimentos de matemática, informática e um pouco de física, me ajudaram a entender as versões populares das formulações pouco usuais aos leigos da área. Como o assunto é vasto, e o espaço oferecido limitado, fui obrigado a realizar simplificações cruciais. Então, por enquanto, vai um resumo.
O que diz o cientista?

Para a física um Deus criador interferindo na ordem do Cosmos é intolerável. A lei causal “tudo que existe tem uma causa” precisa ser respeitada mesmo na origem do universo. Teria isto acontecido? O universo teve um início? Qual a versão da história que os cientistas nos contam hoje?

O universo e seu início é uma área de pesquisa na fronteira da ciência. Poucas pessoas no mundo estão realmente aptas a entender as complexas proposições e formulações envolvidas. Um dos mais renomados físicos vivos do mundo, Stephen Hawking, explanou, em linguagem, que ele chamou de popular, os últimos avanços da ciência a respeito, e propôs, também, sua teoria (1e 3).

Segundo ele, o universo está em expansão acelerada, tendo origem, segundo a maioria dos cientistas, no big bang. No que diz respeito à sua proposta, esta ele baseia na M-teoria ou teoria dos universos múltiplos (multiversos), segundo a qual, “tudo, matéria e campo, é formado por membranas, e que o universo flui através de 11 dimensões. Teríamos então 3 dimensões espaciais (altura, largura, comprimento), 1 temporal (tempo) e 7 dimensões recurvadas, sendo a estas atribuídas outras propriedades, como massa e carga elétrica –  (fonte:Wikipedia).

Esta teoria prevê que nosso universo não é único e haveria a possibilidade de “10 na potência 500 universos, cada um deles com suas leis particulares. Só poucos destes universos teriam condições de ter criaturas como nós e, “não fosse por uma série de coincidências espantosas, dos detalhes precisos das leis físicas, parece que nós, humanos e formas de vida semelhantes, jamais teríamos aparecido.”

Afirma, ainda, que “a percepção de que o tempo (no inicio) comporta-se como o espaço, remove a velha objeção de que o universo teve um inicio, mas também implica que o inicio do universo foi governado por leis científicas em vez de ser a obra de algum deus.” E diz que “é razoável perguntar quem ou o que criou o universo, mas, se a resposta é Deus, então a questão é apenas deslocada para quem ou o que criou Deus.”

Mas qual a origem do universo segundo Hawking? Ele responde: “Visto que a gravidade molda o espaço e o tempo, ela permite que o espaço-tempo seja localmente instável. Na escala do universo como um todo, a energia positiva da matéria pode ser balanceada pela energia gravitacional negativa, e assim não há restrição à criação de universos inteiros!”  E conclui: “Devido ao fato de existir uma lei como a gravidade, o universo pode e criará a si mesmo do nada,…. Criação espontânea é a razão por que há algo em vez de nada, por que existe o universo, por que existimos. Não é necessário invocar Deus para acender o pavio e colocar o universo em movimento. Se o universo é finito – e isto ainda precisa ser provado – será um modelo de universo que cria a si mesmo”.

O que diz o filósofo?

Stephen Hawking (3), página inicial, diz que “início do universo e os porquês são tradicionalmente assuntos da filosofia. Mas a filosofia está morta. Os cientistas tornaram-se os arautos na busca de novos conhecimentos”. Creio haver exageros nestas afirmações. Tivesse Hawking considerado a filosofia, teria chegado a resultados menos polêmicos. O que a filosofia já dissera a respeito, é respeitável. Platão, antes da era Cristã, já dizia  “Deus Espírito eterno, que muda a aparência da matéria de acordo com seu pensamento…”.

Immanuel Kant, (1724-1804), inspirador de muitos outros filósofos e até cientistas como Einstein, abordou em “a lógica da ilusão”, além de outros assuntos, a cosmologia e a teologia. Familiarizado com ciências exatas, não se descuidou em delimitar previamente o objeto de suas análises. Para a cosmologia estabeleceu, como pressuposto “a possibilidade de pensar o mundo “em sua totalidade incondicionada”. Isto só se poderia fazer, transcendendo a perspectiva da experiência possível e tentando ver a natureza inteira como um todo, situado no espaço e no tempo, de um ponto de vista externo a ela.” E perguntou, “essa totalidade é limitada ou ilimitada no tempo? Ela tem ou não tem limites? E conclui: “Vejo-me capaz de provar as duas conclusões”.

Prova 1- “Posso provar que o mundo deve ter um começo no tempo, do contrário, já teria decorrido uma sequencia infinita de eventos, e Kant argumenta, uma “infinidade finda” é uma ideia absurda. Logicamente o mundo teve início.”

Prova 2- “Posso também provar que ele não pode ter começo no tempo, pois se teve um começo, então deve haver uma razão pela qual ele começou, o que é supor absurdamente, que um tempo particular tem uma propriedade causal ou uma capacidade de “gerar”, independentemente dos eventos que o ocupam”.

Uma contradição semelhante foi derivada do pressuposto de que “o mundo como totalidade tem uma explicação para sua existência”.

Prova 3- “posso provar que o mundo depende causalmente apenas de si mesmo, consistindo numa cadeia infinita de causas que ligam cada momento ao momento anterior. Pois a ideia de um começo desta série – a ideia de uma causa primeira – é absurda, levando automaticamente à pergunta “o que causou o começo?” para a qual não existe nenhuma resposta coerente”.

Prova 4- “Posso, da mesma maneira, provar que o mundo é causalmente dependente de outra coisa, derivando sua existência de algum ser que é a “causa de si mesmo”, ou causa sui, pois, se não existisse tal ser, nenhuma das causas na sequência da natureza explicaria a existência de seu efeito. Seria impossível dizer por que algo sequer haveria de existir.”

Kant afirma que “… se removermos do conceito de natureza a referência a qualquer experiência possível por meio da qual ela é observada – as provas destas antinomias têm bons fundamentos.” Claro, sabemos, perfeitamente, que este ponto de observação, postulado por Kant, jamais será alcançado ou oferecido. Mas considerando o atual avanço da ciência as provas de Kant são válidas. A abstração de espaço e tempo exigida se realiza satisfatoriamente na modelagem de sistemas. É o realismo dependente de modelo.

O que diz o Teólogo?

No capítulo reservado ao ideal da Razão, Kant passa pelas principais espécies de argumentos teológicos, como os cosmológicos, os ontológicos e os físico-teológicos, refutando-os categoricamente. Esforço inútil, pois São Tomás de Aquino, autor da Suma Teológica, século XIII, já dissera que estes eram argumentos fortes, mas não se constituíam em provas da existência de Deus. Em síntese, não há provas da existência ou não existência de Deus. Este é assunto da fé.

Concluindo
Se o universo ou multiverso não é eterno, como boa parte dos cientistas afirma, como ele iniciou? Considerando a máxima de que do nada absoluto não resulta absolutamente nada, temos de concluir que alguém (Deus) ou alguma lógica física deu origem ao universo. Como para quase a totalidade dos cientistas Deus sobrou na criação do universo, têm eles pela frente uma tarefa hercúlea, tirar um universo do nada.  Para Hawking isto pareceu fácil, bastando as leis da natureza, existentes, para um universo brotar do nada.  Mas, com isto o cientista está conferindo poderes a outro deus, muito familiar, nas palavras do físico Gerald Schroeder, bastante parecido com o conceito bíblico de Deus – não físico, fora do tempo, capaz de criar um universo! Tem a ciência outra sugestão?

Se, por outra, cedendo ao desejo dos que optam por um universo ou multiverso eterno, têm os interessados nesta proposta a explicar como um tempo infinito terminou nos dias de hoje. Como diz Kant, prova 1, uma  infinidade finda é um absurdo… Qualquer evolução já há uma eternidade teria finda …

Quanto a mim, deixo à ciência avançar até seus limites, numa busca interminável, até entrar num beco sem saída, o que acredito, fatalmente acontecerá. Quanto mais longe ela for, melhor, porque o Deus em que acredito é puro espírito, a causa em si, cujos desígnios são insondáveis. Com certeza não precisou “sujar suas mãos com barro” para efetuar qualquer criação. Parece óbvio, também, que não interfere gratuitamente na natureza, pois ela é decorrência de sua vontade. Assim como eu, muitos cristãos aceitam e adotam o relato da ciência na descrição da evolução do universo ou multiverso, ao qual não faço nenhuma objeção. Claro, da mesma forma que em outras ideologias, também na religião temos fundamentalistas que se agarram às descrições literais da criação na Sagrada Escritura, escrita na época em que se pensava a terra ser plana. Não há razão para a ciência se incomodar com isto. Menos ainda tem a ciência um interlocutor medíocre que merece deboche.

Por fim, segundo Stephen Hawking, as teorias científicas que aparecerão a respeito da origem do universo, não poderão ser efetivamente comprovadas por esta ou qualquer outra humanidade. Formular hipóteses e modelos é o limite da ciência.

Renato Rabuske
Professor  Aposentado