Mitos II: Ficção Ideológica e o falseamento da verdade

A tendência de reduzir a análise de um fato histórico a uma mera interpretação de eventos pode ser aceitável nas “ciências” humanas, mas revela-se insatisfatório para aqueles que buscam pensar amparado por dados objetivos que possam conferir uma certa razoabilidade a análise.

O problema se põe da seguinte forma: Como pode, num intervalo temporal de quase 50 anos, um único evento – o movimento de 31 de Março de 1964 – suscitar interpretações tão díspares?  Ora, se a natureza do problema nos leva a uma interpretação (e não a uma conclusão logicamente construída e irrefutável) até admite-se que haja variadas leituras do mesmo evento. Contudo, as disparidades entre essas diferentes leituras não é aceitável para quem é de fora das “ciências” humanas e acredita ser possível diferenciá-las por critérios empíricos (seja lá o que isso representa numa área não-científica como são as “ciências” humanas).  A solução é então voltar à fonte primária, construída por aqueles que viveram os eventos e que, narrando influenciados pelo momento, são capazes de dar um testemunho descritivo de seu próprio tempo. Tal procedimento não deixa de ser uma interpretação, contudo, ao capturar o espírito dos homens e mulheres da época, esta interpretação primária torna-se uma força que determina a ação coletiva que cria o próprio evento e, assim, faz parte dele. Isso não apenas a distingue da interpretação contemporânea dos nossos dias, mas lhe dá também um lugar privilegiado e hierarquicamente superior ao servir como base experimental  (i.e. produzindo os dados objetivos) a partir do qual se faz toda a análise.

Onde devemos então buscar esta fonte primária, base empírica de nossa investigação? Nos jornais da época, nas memórias dos que presenciaram o momento, nos documentos de governo, partidos etc..  É somente da análise comparativa dessas várias fontes que se poderá formatar uma interpretação que seja (ainda que minimamente) objetiva e racional, e não uma mera obra de ficção ideológica. 
Como exemplo de fonte primária e de como ela nos auxilia na apreciação dos que os contemporâneos afirmam, vejamos o que o jornalista Carlos Castello Branco nos diz em uma de suas colunas diárias no então Jornal do Brasil de 19/5/1967: “Embora numerosos militares se tenham envolvido nos acontecimentos que geraram a situação reinante no país até março de 1964, […] é tese pacífica que as Forças Armadas intervieram no processo político para suprir a incompetência de que deram mostra as lideranças civis em conduzir a nação tranquila e ordeiramente à consecução dos objetivos nacionais. Foi, portanto, para remediar uma situação de insegurança e de pânico, gerada pela insuficiência do comando civil, que deu expressão a uma longa conspiração civil-militar contra o regime deposto nos episódios de 31 de Março e 1 de Abril. […] Ao contrário das vezes anteriores, em que, convocadas por rebeldias civis, as Forças Armadas restauravam a situação de tranquilidade e se retiravam do palco, dessa vez os chefes militares aceitaram eles próprios a missão de dirigir o governo civil, tão graves lhe pareceram as feridas abertas no sistema legal do país. Tivemos um primeiro marechal na Presidência da República, temos agora um segundo, e ninguém duvida que tudo se prepara para termos pelo menos um terceiro. […] Isso, no entanto, não envolve a aceitação, pelos militares alçados à Presidência, de que o regime se tornou militarista, pois o propósito declarado dos dois marechais, do primeiro e do segundo, é restaurar em plena segurança o poder civil. Trata-se de dado positivo e de disposição que lisonjeia os chefes eventuais do poder. É de considerar, porém, que nem o antigo nem o atual presidente abdicaram do privilégio, que se afigura assim inerente ao status de militar, de dizer qual ordem civil que deve prevalecer, o que é ordem civil legítima e quando tal ordem poderá voltar à plena vigência. [….] é nessa linha a reação dos círculos parlamentares ante as últimas declarações do Presidente da República, de amor ao poder civil, mas de ressalva quanto ao conceito do poder civil viável nos dias que correm. Como ilustração das reservas com que acolheram as palavras do Marechal Costa e Silva, em São Paulo, lembram que, civil embora, o governo não abdica do instrumental ditatorialista que lhe foi legado pelo primeiro governo revolucionário, fechando as portas à revisão da Constituição, da Lei de Segurança Nacional e da lei da Imprensa.Equotd+

A leitura atenta deste trecho nos permite observar pontos que estão ausentes na análise de muitos contemporâneos. Aqui, o jornalista foca sua atenção na preocupação dos parlamentares à restrição ao exercício do poder civil como externada pelo chefe militar, mas deixa implícito que o movimento de 31 de Março surgiu como necessidade diante de uma situação volátil e de insegurança pelo qual o país passava.

Que conjuntura era essa, então? Esta pergunta é esquecida e desvirtuada por muitos. Com efeito, alguns contemporâneos pensam o movimento de 64 dentro de um embate de forças opondo progressistas e reacionários que terminou por coroar os esforços destes últimos que, organizados em IBAD, IPES etc.,  fomentaram o “golpe” que culminou com a “Conquista do Estado”. Mas, podemos seguramente afirmar que esses autores fazem um recorte grosseiro do fato selecionando apenas o que lhe convém, pois, aceitando sem reservas esta versão, porque o jornalista afirma ser  “…tese pacífica que as Forças Armadas intervieram no processo político para suprir a incompetência de que deram mostra as lideranças civis em conduzir a nação tranquila e ordeiramente à consecução dos objetivos nacionais”? Não haveria aqui uma contradição aos contemporâneos,  onde aqueles  tidos por “reacionários” estariam na verdade empenhados na defesa das instituições do país ameaçadas por alguns, tidos como “progressistas”?  (Ah, sim, alguns dirão que o jornalista fala em nome dos vencedores, ignorando que em vários aspectos ele também é crítico do regime. Na verdade, a coluna de Carlos Castello Branco com sua notável ênfase descritiva traduz tão somente a dinâmica da ocasião vista por alguém que, no ofício de jornalista, tinha um posto de observação privilegiado.)
Ou seja, na ótica do jornalista, somos levados a pensar parte dos  “progressistas” como revolucionários, o que é corroborado pelo que lemos do relato de alguns que viveram a época. Por exemplo, Gorender  (ver o cap. 8 de seu livro “Combate nas Trevas”)  vê o movimento de 31 de Março como um “golpe preventivo”, afirmando que “os militares fizeram bem em agir antes que o caldo entornasse” ( Gorender se refere ao caldo entornado  como o golpe que os comunistas tramavam).  Outra fonte primária que fornece elementos para análise se encontra no livro de Jayme Portella, “A Revolução e o Governo Costa e Silva”, onde ele apresenta inúmeros fatos que ilustram a deterioração da vida do país, com ações armadas no campo, a milícia armada de Brizola, discursos de políticos pregando abertamente a tomada do poder com a implantação do comunismo, o fechamento do congresso nacional etc. (ver,  por exemplo, pags. 115-120 do livro “A Revolução Impossível” onde lemos sobre o encontro de Prestes com Krushev em Janeiro de 64. Na ocasião,  Prestes relata seu plano de comunizar o Brasil usando as reformas de base de Jango como pretexto para fechar o congresso nacional). Outra obra de importância, que serve como fonte primária, se encontra no relato dos vários militares organizados na coleção “História Oral do Exército” sobre o Movimento de 31 de Março de 1964. Embora seja a versão de um dos lados que participaram do movimento de 64, a coleção expõe fatos históricos incontestáveis que refletem a visão dos chefes militares, da mesma forma que os documentos dos partidos comunistas expõem de forma incontestável a motivação e objetivos dos comunistas, como demonstra Gorender.

Devemos então nos perguntar: Porque muitos contemporâneos não fazem qualquer menção das intenções da esquerda? É aqui que surge um novo gênero de pseudo-investigação a que me referi como ficção ideológica. O termo é apropriado porque pretende unicamente formar um discurso a serviço de uma ideologia sem a devida preocupação de consistência com os fatos registrados, ou seja, descompromissado com sua base empírica.  Disso se serviram terroristas de esquerda para se transmutarem em democratas, capitalizando assim ganhos políticos, enquanto outros desfilam como “cientistas” sociais negociando ficção ideológica como se fosse algo que tivesse algum valor teórico. O estrago causado por esse descompromisso nós vemos de forma explícita quando membros da comissão da verdade (?),  contemplando o período compreendido pelo regime militar iniciado em 1964, decidem investigar somente as ações do Estado deixando de fora as ações dos grupos subversivos comunistas. Neste caso, ao fazerem uma edição dos fatos históricos retirando-os de seu contexto, pretendem demonizar um lado e glorificar o outro, justificando indiretamente as ações armadas da esquerda como meios legítimos de luta pela democratização do país. Contudo, retornando ao que é empírico, vemos que os documentos dos grupos subversivos da luta armada  (ver o livro “Imagens da Revolução”, de Daniel Aarão Reis) os contradiz ao mostrar que eles lutavam na verdade pela implantação de uma ditadura comunista no Brasil. E é assim que a ficção ideológica impregna todos os setores da sociedade: escolas, universidades, sindicatos, mídia etc. , e avança na domesticação  de todos os estratos sociais da nação. Urge então que voltemos ao estudo diligente das fontes primárias para compreender o que os homens e mulheres de  outrora (e que construíram o evento) têm a nos dizer em nosso tempo presente. Dirijamos-nos ao povo e as pessoas de bem deste país ensinando-os e capacitando-os para pensarem por si, deixando a ficção ideológica e a sua indelével marca doutrinária restrita aquele domínio das “ciências” humanas onde foi criada. Audax et Fidelis.

Marcelo Carvalho

Professor do Departamento de Matemática