O Mistério Pascal – reflexões sobre um tema de Louis Bouyer

Este cântico de louvor a Deus, pela ocasião do nascimento de João Batista, o precursor, e da belíssima menção que faz a Misericórdia Divina, pode ser visto como um anúncio do mistério pascal que Nosso Senhor Jesus Cristo realizaria cerca de trinta e três anos mais tarde. Mas, no que consiste este mistério pascal? Como entender sua necessidade e eficácia?

Liturgicamente, o mistério pascal envolve dois grandes momentos complementares, celebrados na Quinta-Feira e Sexta-Feira Santa, e uma conseqEuumld+ência lógica desses eventos que envolve o Domingo da Páscoa, antecipado na grandiosa vigília do Sábado Santo. O que a liturgia encerra dá um sentido a própria História humana e é analisado de forma extraordinária pelo Pe. Louis Bouyer (The Paschal Mystery), como veremos brevemente a seguir.

Lembramos que na quinta-feira recordamos a instituição da eucaristia. Etimologicamente, o termo significa um “sacrifício de ação de graças”, isto é, constitui-se no oferecimento de tudo que nós temos a Deus. Isto significa a livre aderência de nossa vontade a vontade de Deus. Contudo, quase todas as religiões, desejando restabelecer uma proximidade do gênero humano com Deus, acabam por oferecer um sacrifício de expiação onde uma vítima é imolada. Este caráter expiatório do sacrifício, que a princípio era de ação de graças, encontra sua necessidade no Livro do Gênesis quando, já afetados pela desordem do pecado original de seus pais, Abel e Caim apresentam a Deus os frutos de seus trabalhos e Deus então aceita com agrado o sacrifício de Abel, que por ser um pastor havia imolado uma ovelha de seu rebanho, e rejeita o sacrifício de Caim, que sendo lavrador apresentara os frutos do campo. Vê-se então que na condição em que o ser humano se encontra não há sacrifício de adoração perfeito ao Pai que possa ser feito, e o que seria um sacrifício tão somente agradável a Deus envolve necessariamente uma vítima. Ora, um ser humano não é capaz de oferecer um sacrifício perfeito a Deus, pois sujeito ao pecado ele já não consegue acessar plenamente a Deus, e tampouco a sua vontade o permite aderir livremente a Deus, pois seu amor é imperfeito É aqui que se vai encontrar o sentido da eucaristia como uma forma de corrigir isso.

Com efeito, Jesus, na sua condição divina e humana, realiza em nosso favor um ato de adoração perfeito ao Pai que é um verdadeiro sacrifício de ação de graças. Jesus consegue realizar isso, pois sua natureza divina e sem pecado o torna plenamente acessível a Deus e a sua vontade, livre da culpa e dos vícios que afetam a nossa vontade, permite que Jesus ame perfeitamente o Pai É neste sentido, de oferecer em nosso favor um sacrifício de ação de graças, que se entende a fórmula clássica da primeira parte da consagração eucarística quando Jesus apresentando o pão a Deus Pai diz: “Este é o meu corpo que será entregue por vós”. Sacramentalmente, ao dizer que este pão é “o meu corpo”, Bouyer sugere que Jesus livremente une a sua humanidade divinizada à nossa humanidade e, assim, por meio deste sacrifício Jesus restabelece novamente a proximidade da natureza humana a Deus Pai. Mais ainda, ordenando aos discípulos que repitam esse gesto (e por isso Nosso Senhor institui na mesma ocasião o sacramento da ordem) Jesus torna possível que nós façamos um sacrifício de adoração perfeito ao Pai toda vez que unidos ao sacerdote se celebra a eucaristia na Santa Missa. Contudo, permanece ainda a necessidade da expiação. Aqui, o próprio Jesus oferece ao Pai um sacrifício expiatório, onde Ele se apresenta como vítima. Este sacrifício de si mesmo Jesus realiza sacramentalmente ao oferecer ao Pai o cálice com vinho, como vemos na segunda parte da consagração eucarística quando se diz: “Este é o cálice do meu sangue, o sangue da nova e eterna aliança que será derramado por todos, para a remissão dos pecados”. O sentido expiatório está nítido: o sangue que dá vida ao corpo, uma vez separado do corpo, sinaliza a morte. Convêm notar aqui que é necessário que o próprio Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, seja a vítima, pois como veremos a seguir qualquer outra vítima não resolveria o problema da restauração da humanidade decaída e refém do inimigo que lhe causou a queda. Resumindo, a instituição da eucaristia na quinta-feira santa representa um ato livremente aceito por Jesus em nosso favor, onde Ele oferece um sacrifício perfeito de adoração a Deus da qual nós participamos (em cada Missa que é realizada) É também, ao mesmo tempo, um sacrifício expiatório de si mesmo, necessário para que sejamos livres da sujeição ao inimigo causada pelo pecado, cuja consequência nos leva a morte física. Dizemos então que a quinta-feira santa é a “hora de Jesus”, isto é, representa o momento derradeiro quando “começa o julgamento deste mundo, e o príncipe deste mundo será expulso”. [João 12, 31]

Já na sexta-feira santa temos a hora do príncipe do mundo, isto é, o momento onde o inimigo submete Jesus ao seu aparente domínio, e que leva Jesus ao sofrimento nas mãos dos homens, que então o maltratam e o tratam arbitrariamente até que Ele padeça morrendo na cruz É dessa forma que ocorre concretamente a consumação do sacrifício que Jesus livremente aceitou e realizou sacramentalmente na quinta-feira. Assim, é importante notar que o príncipe das trevas tem a sua hora unicamente porque no dia anterior Jesus aceita livremente se sujeitar a isso. Esta sujeição espontânea de Jesus demonstra, sob a luz da fé, o paradoxo da Cruz, revelando ao mesmo tempo o horror do pecado pelo que ele causa, o infinito amor de Deus e o quanto Ele está disposto a fazer para expiar o nosso pecado. Desta forma, não poderia ser outra, a não ser de forma livre, o sacrifício de entrega que Jesus faz. Conclusão: a Paixão de Cristo concretiza na sexta-feira santa aquele sacrifício que Jesus sacramentalmente instituiu na quinta-feira santa e que é renovado em cada Missa realizada, sendo fonte de graça inesgotável para todos que com boa disposição se nutrem dos frutos de vida que emanam dessa fonte, verdadeira prova da misericórdia e do amor divino pelo ser humano.

Resta analisar aqui a necessidade da expiação, isto é, entender como a restauração da nossa condição original junto a Deus requer a expiação. Não poderia Deus na sua onipotência ter decretado a nossa redenção sem que tivéssemos que passar antes pelo tortuoso caminho do sofrimento e da morte? Bouyer assinala que isto não seria possível, pois entre Deus e a humanidade existem forças obscuras, mas reais, e de uma natureza muito pessoal que Deus não pode ignorar. Com efeito, em sua rebeldia, esse inimigo puramente espiritual – o diabo – decretou sua aversão ao plano divino em relação à humanidade, e essa inimizade em relação ao homem fica explícita várias vezes na Bíblia quando Jesus nos esclarece em uma de suas parábolas que foi um “inimigo” que havia semeado o joio no meio do trigo. Mais explicitamente, o Livro do Gênesis nos conta simbolicamente como este inimigo ludibriou os primeiros seres humanos, Adão e Eva, e de como o mundo, entendido como o ambiente onde o ser humano está imerso, foi afetado pela desordem, e também de como isso afeta nossa matéria, isto é nosso corpo, também dito a “carne”. Este inimigo afirma então um domínio sobre o mundo e a nossa carne pela sujeição que livremente fazemos a ele ao pecar, sendo o pecado entendido aqui como a afirmação de vontades humanas que se contrapõem a vontade divina, ou seja, aquilo que chamamos de desobediência É importante notar que esse domínio do inimigo sobre nós é algo concedido por Deus, não como um direito que o inimigo adquiriu sobre nós, no sentido de ser algo que ele pudesse cobrar de Deus, mas sim como conseqEuumld+ência da essência decaída desse inimigo que escolheu livremente se separar do amor divino. Ora, se Deus é a perfeição, o amor, e o autor da vida então é de se esperar que aquele que se separa de Deus possa unicamente afirmar, por oposição, a imperfeição, o ódio e a morte. Ora, se a liberdade dessa criatura o levou por sua livre vontade a odiar a Deus e a todo o plano divino, sua existência como criatura decaída o leva agora a afirmar os atributos que ele mesmo intrinsecamente carrega e introduziu na criação outrora perfeita, isto é, a destruição. Resta a esse inimigo atacar então a parte da criação divina que ainda é testada, ou seja, o ser humano. Mas, como explicar que a atuação do inimigo se dê no mundo e sobre a carne? Aqui, a freira espanhola do século XVI, Maria Jesus EAacuted+greda, nos permite elaborar uma explicação a partir do parágrafo 48 do volume I de seu livro “Cidade Mística de Deus” quando escreve que

“no sexto instante foi decretado a criação de um povo e de uma congregação de homens para Cristo, que já estava formada na mente e na vontade divina, e no qual o homem seria formado segundo sua imagem e semelhança, afim de que o Verbo encarnado encontrasse irmãos, similares, mas inferior a Ele, e um povo de sua mesma natureza do qual Ele seria a cabeça. Neste instante, foi determinada a ordem da criação de toda a raça humana, que começaria de um homem e de uma mulher e se propagaria até que nascessem a Virgem Maria e seu Filho na ordem que havia sido predestinada. A queda de Adão também foi vislumbrada (como algo possível) e nele a queda de todos os outros, exceto a da Virgem Maria, ao qual tal decreto não se referia. Como um remédio,

(diante dessa provável queda) foi ordenado que a humanidade seria capaz de sofrer”.

Essa possibilidade da humanidade sofrer, mencionada por EAacuted+greda, torna-se o ponto central no mistério da Cruz já que é nela que o sofrimento supremo de Jesus se realiza.

Notemos que quando Jesus se submete livremente ao sofrimento e a morte Ele o faz em nosso favor, pois sendo Deus e homem ele não se sujeita ao pecado já que pela sua natureza divina Jesus afirma somente desejos divinos. Para entendermos o que o sofrimento de Jesus na Cruz realiza para nós é preciso primeiro atentar para o fato que o sofrimento humano nada mais é do que uma resposta a aniquilação de quem está morrendo. Ora, neste sentido, o sofrimento não se torna algo necessariamente ruim, pois pode despertar na consciência um desejo de livremente estar com Deus (ainda que seja um desejo imperfeito), ou também uma revolta. Em qualquer caso, pelo esforço puramente humano nada é possível. Contudo, em Jesus, o sofrimento produz uma resposta amorosa de quem ama perfeitamente o Pai, e o Pai responde a esse amor de uma forma maravilhosa, como escreve brilhantemente Bouyer:

“Em Jesus, o sofrimento não é um mero lamento de um ser humano pela consciência do pecado É, primeiramente, o perfeito acorde do seu livre desejo com o instinto natural de todo o seu ser. E vai mais longe, o sofrimento exalta ao patamar superno do EAacuted+gape aquele instinto natural, do ser criado por Deus, para uma participação na sua vida divina. Assim, dessa forma, o sofrimento ganha, pela onipotência da graça, aquilo que aquele instinto natural aspira – a vitória sobre a morte.

A morte física, o limite que o diabo pode infligir a Jesus, não foi capaz de apagar a centelha vital Dele. Como dissemos, o diabo nos domina apenas na medida em que nós permitimos nossa vontade em pecar.Uma vez que Jesus sofreu em perfeita obediência, o sofrimento que em nós era infrutífero, Nele torna-se vivificanted+ posto numa tumba, Ele se levanta dali. Assim, Cristo, pelo seu sofrimento, conquista o pecado, a morte e o diabod+ não que um sofrimento similar de um ser humano tivesse poder para derrotar esse tríplice inimigo, mas sim que era Ele, o Cristo, que sofreu, Ele, o perfeito adorador do Pai, Ele no qual o diabo não tem nenhum poder nem domínio.”

Essencialmente, o que Bouyer nos ensina é que uma vez que em Jesus a vontade não encontra os vícios e faltas que encontra em nós como consequencia do pecado, vemos que em Jesus a sua vontade consegue ascender a própria realidade do Pai, fazendo um ato de amor supremo a Deus, mesmo que momentaneamente Jesus tenha se sentido suprimido da sua realidade divina a ponto de lamentar “Pai, porque me abandonastes”? A resposta do Pai diante dessa aniquilação amorosa do Filho, em total obediência, não poderia ser menos amorosa, assim, Jesus não pode permanecer morto, e o amor de Deus dá-lhe aquilo que Jesus aspirava, e assim o ressuscita para a glória.

O sacrifício de expiação de Jesus, oferecido por nós, permite então que nós nos configuremos a Ele, unindo nosso sofrimento ao sofrimento Dele. Aqui, embora o nosso sofrimento não seja capaz de produzir uma resposta perfeita de nossa vontade em um ato de amor a Deus, é fato que unidos a Jesus pelo desejo de assim estar, somos recipientes da Misericórdia Divina e é essa misericórdia que completa em nosso sofrimento aquilo que lhe falta para se transformar num ato de amor perfeito a Deus É aqui que a obra da redenção se revela como uma manifestação do amor e da misericórdia divina. Assim, sem o sacrifício de Jesus e o seu sofrimento, o nosso sofrimento de nada valeria, pois a Misericórdia Divina, que aperfeiçoa nosso sofrimento, é uma graça que Jesus obteve na Cruz para toda a humanidade.

Uma Última observação, contudo, se faz necessária. Vimos que o sofrimento permite que nossa vontade faça um ato de amor a Deus que é tornado perfeito pela Misericórdia Divina, mas, não seria o sacrifício expiatório de Jesus eficaz a ponto de nos poupar do sofrimento e de assim de ter que fazer este ato da vontade? Ou seja, voltamos a mesma questão ainda não respondida: Por que o retorno ao Pai é feito de forma dolorosa e sangrenta, mesmo depois do que Jesus realizou por nós? Bouyer lembra uma forma antiga de se pensar essa questão e faz um paralelo de que há uma dívida a ser paga que se desdobra em duas formas antagônicas, uma pensada por São Gregório que acreditava que a dívida é paga ao inimigo que nos mantêm cativo, e a outra pensada por Santo Anselmo que acreditava que a dívida é paga a Deus pela afronta cometida contra a justiça divina pelo pecado cometido. Aqui, Bouyer levanta uma outra interpretação. Na verdade, a nossa liberdade determina que aquilo que livremente decidimos tem consequências que devem ser assumidas e fazem parte da nossa história pessoal. Assim, Deus não pode abolir essas conseqEuumld+ências sem violar nossa liberdade. Ora, se o pecado é uma afirmação de nossa vontade em oposição a vontade divina, ele projeta em nosso horizonte um fato – a desobediência – que não pode ser desconsiderado por Deus sob pena de deixarmos de ser livres, é este fato em si que nos sujeita ao sofrimento e a morte pelo pecado cometido.

Um fato que complementa essa conexão causal entre a liberdade e o sofrimento, desenvolvida por Bouyer, é levantado por Varillon em seu livro “Announcing Christ” e se expressa resumidamente na seguinte forma. Se Deus nos criou para sermos perfeitos (“Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito” [Mt 5,48]), então o amor divino requer que amemos a Deus de forma perfeita. Mas, se exercendo nossa liberdade afirmamos uma vontade que se opõe a vontade divina estamos na verdade negando em parte este amor divino pela afirmação de um amor de nós mesmos. Varillon entende então o sofrimento como uma renúncia de si mesmo, uma forma de retirar de nós esse amor próprio que ocupou temporalmente um amor que deveria ser destinado somente a Deus. Assim, o sofrimento aceito em obediência e que suscita um ato de amor a Deus torna-se a Única forma de restituir a Deus o amor a Ele devido e, assim, pela ação da Misericórdia Divina poderemos retornar a um estado de perfeição que nos habilita a estar com Deus.

*Marcelo Carvalho
Professor do Departamento de Matemática da UFSC