A doutrinação ideológico-religiosa na escola pública

A equivalência funcional entre ideologia e religião tradicional já é amplamente aceita. Apenas para posicionar o assunto, lembro que Marx explicou sistematicamente todas as religiões como superestruturas ideológicas e disse que a religião havia se tornado uma entre muitas ideologias possíveis. Também Gramsci se referia às ideologias como seitas. E Hannah Arendt [1] lembra que nas ciências sociais essa equivalência funcional adquiriu grande destaque ao mesmo tempo que se classificava o marxismo como uma ideologia, nem melhor nem pior do que as religiões. Só que Marx e Engels escondiam essa verdade porque tirava o encanto de suas pregações.

Harari [2], doutor em História pela Universidade de Oxford, diz que a religião e a ideologia têm duas qualidades em comum: Em primeiro lugar, sustentam uma ordem sobre-humana abrangente, que é considerada verdadeira sempre e em toda parte. Em segundo lugar, insistem em difundir essa crença para todos. Ou seja, a ideologia e a religião são universais e missionárias.

O autor acrescenta, ainda, que a era moderna testemunhou a ascensão de uma série de religiões baseadas em leis naturais, como o liberalismo, o comunismo, o capitalismo, o nacionalismo e o nazismo. Diz que esses credos não gostam de ser chamados de religiões e se referem a si mesmos como ideologias. Mas esse é, segundo o autor, apenas um exercício semântico. Depois de mostrar que o comunismo soviético foi uma religião fanática e missionária, Harari observa que essa linha de raciocínio pode ser desconfortável a alguns leitores. Se isso os faz se sentirem melhores, que continuem chamando o comunismo de ideologia em vez de religião. Não faz diferença.

Onde pretendo chegar? Em 2014, a SED-SC propôs um novo currículo para a escola pública estadual de Santa Catarina, a PCSC-2014. A ordem do Sr. Secretário era de que a nova proposta “não contivesse qualquer viés ideológico ou político-partidário”. Mas o que foi feito? Na avaliação dos próprios autores dessa PCSC, “o documento manifesta algum pluralismo teórico-metodológico”. Na verdade, não consegui detectar nem esse “algum pluralismo”.

O fato é que no Percurso Formativo da PCSC-2014, parte curricular que traça o perfil do cidadão em vista, é mantido o marxismo como base doutrinária do currículo, munindo-o de ferramentas operacionais com suporte marxista como a abordagem histórico-cultural, a pedagogia histórico-crítica e a psicologia pedagógica de Vygotsky, a mesma usada pelos títeres do regime ditatorial da União Soviética no século passado. Toassa [3], que aprofundou a análise desta psicologia, ressalta que ela recebeu empenho missionário e que foi desenvolvida para atender a uma necessidade da Revolução Comunista Russa de 1917.

Além da introdução do marco filosófico do marxismo, chama a atenção o fato de a parte formativa do indivíduo visado conter uma verdadeira catequese. Sim, de fato, entronizaram uma religião no currículo, uma religião a cargo do Estado para doutrinar crianças indefesas! Mas quem se importa com isso? Qual a autoridade que reagiu a isso? Em contraposição, lembram-se do barulho que aquela simples missa no campus produziu? Ah, os símbolos religiosos precisam ser banidos do espaço público. Muito bem, que se inicie eliminando a doutrinação ideológico-religiosa, paga por todos nós.

Além disso, para a religião do Estado ser hegemônica, determinaram que “os fenômenos religiosos na escola laica precisam ser analisados criticamente como os demais fenômenos, não podendo ser referência para sustentação de valores, visões de mundo, comportamentos ou atitudes homogeneizantes”. Querem exclusividade para os valores e as visões da religião socialista! É, o fanatismo religioso perdeu a vergonha!

O que mais me chocou, no entanto, foi o ataque às crenças religiosas cristãs. A PCSC afirma que cada “ser” desenvolve a sua humanidade ou que ela é produzida coletivamente. Então, nós não nascemos já humanos? Até afirmam que a humanidade do jovem é diferente da do idoso. O que é humanidade para eles?

Mas voltemos ao objetivo central do currículo, a formação do cidadão socialista. Segundo o ensino de Marx, presumidamente aceito por seus seguidores, a derrocada do capitalismo se dará quando ele atingir o seu auge. Embora eu não acredite nas leis da história, não posso furtar-me a um raciocínio honesto. Na hipótese de que Karl Marx, de fato, tenha razão, o capitalismo será soberano até atingir o seu auge, entrando então num declínio cíclico irrecuperável, cedendo espaço a uma nova forma de produção, uma nova economia. Como os socialistas sonham que então será a vez do socialismo, era de esperar que tivessem um comportamento coerente com isso. Coerente seria o currículo formar bons adeptos do capitalismo, o que ajudaria esta ideologia a subir mais rapidamente ao seu cadafalso, não é verdade? Ou, de fato, eles não acreditam em Marx ou querem antecipar-nos o paraíso socialista?

Em prol desta tese (de Marx), invoco o pensamento da diretora do Andes-SN, Olgaíses Maués, que encerrou sua intervenção no II ENE afirmando que, feita a crítica, é necessário apontar para outro caminho para a educação pública no Brasil. “A educação deve ser a base da emancipação humana, deve ajudar a pensar, e não a obedecer”.

Levando a bela ideia para uma prática possível e imediata, é necessário afastar a doutrinação ideológica (religiosa) das escolas porque ela forma um cidadão bitolado, fanático, sem capacidade de escolhas livres. Só sabe obedecer e repetir chavões e palavras de ordem. Se, ao contrário, formarmos cidadãos esclarecidos, com uma visão plural, estaremos trabalhando para um maior dinamismo da sociedade, em que cada cidadão explorando suas potencialidades deixa de ser um parasita do Estado e ajuda no crescimento do todo.


Renato A. Rabuske

Professor aposentado

[1] “Compreender”, ensaios de Hannah Arendt, 1994.

[2] “Uma breve história da humanidade: Sapiens”, de Yuval Noah Harari, 2015.

[3] “Conceito de consciência em Vigotsky”, de Gisele Toassa, 2006.