“Procuração” em assembleia sindical

“Se trata de co-mover, não de promover. Comover supõe mover-se com o outro, como em uma dançad+ e faze-lo de todo coração e estomagod+ e ser inteiro, não apenas com a cabeça. A comoção opera por contágio” (Gustavo Esteva).

 

No meio do turbilhão em que vive a UFSC, a Apufsc fará no dia 8 uma AG para alterar o Estatuto, na qual, “pela primeira vez, numa Assembleia da Apufsc-Sindical, poderá ser utilizada procuração” (http://apufsc.org.br/Noticias.aspx?mode=detailERowId=HupxFormContentID=7507EHupxFormContentID=7507EHupxFormContentType=2).

 

Esta novidade histórica é prenhe de significados. Terceirizar a participação numa AG é ultrapassar um limiar com tristes consequências para a ação sindical.

 

Diferentemente de um condomínio, um Sindicato é uma instituição de natureza política, de mobilização e luta pelo interesse comum e de cada um. A condição básica para qualquer ação coletiva deste tipo é a existência de relações de confiança entre os envolvidos.

 

Alavancar ações e mobilizações fortes e efetivas requer uma forma de confiança que brota de encontros cara-a-cara e relações interpessoais. E elas nascem, além do lugar de trabalho, dentro do espaço sindical apropriado para tal: as assembleias. A ausência duma intersubjetividade primária impede a formação de sujeitos políticos, ou faz-los estruturarem-se incompletamente, levando-os a se expressar frágil e caricaturalmente.

 

Pulverizados em gabinetes e laboratórios, escondidos atrás das telinhas, nosso lócus de trabalho nos atomiza cada vez mais. Se nunca nos encontramos, e ficarmos para sempre restritos cada um ao seu microcosmo, como desenvolveremos a confiança necessária para a ação coletiva?

 

Restava-nos ainda as assembleias. Mas, com esta “Procuração”, e com o novo Estatuto abolindo o quórum presencial para instalação de assembleias, sequer nelas nos encontraremos mais. Encerra-se uma era: a das assembleias de professores.

 

Adentramos num extremo, oposto ao antigo assembleísmo. Esta “Procuração” não é exatamente a pá-de-cal na política sindical, mas é fazê-la de forma minguada e perigosíssima.

 

Hoje exige-se quórum presencial de 5% dos sócios para instalar uma AG. Uma das principais alterações do Estatuto da Apufsc quer abolir este quórum. Não alcançar o quórum sinaliza que não houve uma motivação política ampla e adequada para mobilizar os colegas, e que talvez até a própria pauta não reflita um interesse comum.

 

Neste jogo, alguns propositalmente ausentam-se da mesma, por não concordarem ou não estarem interessados na sua pauta, sentindo-se seguros que os grupos contrários ao seu interesse não alcançarão o quórum. A deserção/saída é também uma estratégia com ótimos resultados.

 

Mas, por compormos a mesma instituição, uma substancial e decisiva fração dos desejos individuais depende da promoção do interesse comum, sendo inacessível pela via narcísica dum individualismo exacerbado. Assim, os melhores resultados advém quando se forja o circuito virtuoso e próspero da ação coletiva, ou seja, uma força política (“capital social”, conforme alguns) capaz de alcançar um proveito compartilhado.

 

Participar de uma AG é a culminância de um saudável processo político, é indicativo que a organização sindical ainda faz sentido. É vitalizante participar de uma AG. É nela que saímos dos nossos casulos. Nela dão-se encontros e interações aleatórios e inovadores, podem descortinar-se novos olhares e percepções, estimulando sínteses criativas e novas possibilidades antes não percebidas.

 

Ir numa AG pode ser uma experiência profundamente humana de conexão e vínculo. Nelas alimentam-se paixões, da qual brotam ações concretas que tanto carecemos.

 

É da natureza do humano relacionar-se. Ao nos encontrarmos estabelecemos conexões, das quais brotam afetos. Ser afetado instaura a forma elementar da sociabilidade.

 

Afetos nos afetam. Não ficamos indiferentes àquilo que nos afeta, como sentencia o ditado: “o que me comove, me move”. É aqui que pinta “o clima”. Daqui nasce o impulso para o agir político, ou seja, a ligação entre os indivíduos, solo que sustenta fortes identidades coletivas.

 

Política é o campo da formação do “nós”, e não simplesmente o do diálogo e confrontação de “eus”. Mas, é dialogicamente que se gera, mais que entendimentos racionais, a imprescindível afetividade e inter-reconhecimento mútuo que alavanca o político. Os afetos, uma dimensão fundamental do político, cessarão ou se debilitarão quando tudo ficar reduzido ao âmbito virtual.

 

Com esta “Procuração” nos resignamos a uma vida sindical puramente artificial, impotente e vazia. Através dela não sairemos mais do buraco. Pois, revogado o quórum presencial para instalação de AG, e levando a deliberação apenas para meios digitais (outra alteração proposta, esta bem vinda), nunca mais haverá o vital encontro dos olhares e corpos.

 

Hoje temos uma tecnologia fantástica de comunicação e interação, uma ferramenta que poderia propiciar calorosos e potentes encontros políticos. Mas, paradoxalmente, como indicou Denis Villeneuve, “quanto mais intenso é nosso contato com a tecnologia, mais frágil é nosso contato com a realidade”.


Armando de Melo Lisboa

Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais