Em defesa da UFSC e do livre pensamento

O processo aberto pelo procurador federal Marco Aurélio Dutra Aydos contra o reitor e chefe do gabinete da UFSC, prof. Ubaldo Balthasar e prof. Áureo de Moraes, não se limita apenas aos dois profs. citados, mas se estende a toda a comunidade da UFSC, pois o objeto da denúncia limita à liberdade de expressão – princípio e fundamento mais precioso de uma universidade.

A íntegra da denúncia do MPF pode ser acessada em http://www.mpf.mp.br/sc/sala-de-imprensa/docs/denuncia-oferecida-nos-autos-5015425-34-2018-404.7200,  e  surpreende pela pouca razoabilidade dos argumentos que são apresentados contra os professores Ubaldo e Áureo. A seguir analisarei alguns trechos que acredito servem para mostrar  a fragilidade da denúncia oferecida pelo procurador.

Em sua denúncia, o procurador Marco Aurélio considera que a honra da delegada da polícia federal Érika Marena foi ofendida por manifestantes que durante evento em homenagem ao ex-reitor prof. Cancelllier  se manifestaram ostentando faixas onde se via a foto e o nome de Erika e também se lia:

“As faces do Abuso de Poder”

“Agentes Públicos que praticaram Abuso de Poder e que levou ao suicídio do Reitor. Pela apuração e punição dos envolvidos e reparação dos malfeitos!”

 

Inicialmente, analisemos se há um fundamento concreto para o conteúdo das faixas, pois, havendo fundamento, qual a base que o procurador tem para oferecer denúncia? Isto é, havendo fundamento no conteúdo da faixa, pode alguém ser penalizado por falar a verdade, mesmo se esta verdade incomodar outra pessoa, no caso, a delegada Erika? Vejamos então se haveria por parte dos manifestantes algum embasamento objetivo para o conteúdo da faixa.

 Como foi divulgado na mídia, prof. Cancellier escreveu um bilhete onde explicava as razões para seu ato extremo:

“A minha morte foi decretada quando fui banido da universidade!!!” [..]

https://ndonline.com.br/florianopolis/noticias/irmao-divulga-reproducao-de-bilhete-deixado-pelo-reitor-da-ufsc

Ora, uma vez que o banimento do prof. Cancellier se refere a sua prisão e conseqüente afastamento da universidade, vemos então que o próprio Cancellier parece indicar que o fato que gerou sua morte foi a sua prisão e conseqüente afastamento da universidade. Mas, o fato (= prisão, afastamento) tem sua causa na ação dos agentes públicos que solicitaram, autorizaram e executaram seu banimento (= prisão, afastamento). Neste caso, o conteúdo da faixa dos manifestantes:  “Agentes Públicos que praticaram Abuso de Poder e que levou ao suicídio do Reitor”, pelo menos no que se refere ao fato do “que levou ao suicídio do reitor” parece ser algo que o próprio Cancellier expressou em seu bilhete. Assim, nesta perspectiva, parte do  conteúdo da faixa não se trataria de uma acusação arbitrária e difamatória por parte dos manifestantes, circunstância que então justificaria a acusação do procurador, mas sim de algo que provavelmente eles deduziram do bilhete deixado pelo prof. Cancellier. Como pode então o procurador oferecer denúncia anexando essa frase ao processo como se constituindo uma ofensa a delegada Erika? A delegada Erika pode achar o que bem desejar, contudo entre o que ela acha e o que é real há uma grande diferença. Temos um fato concreto de uma pessoa que cometeu um ato extremo de suicídio e deixou um bilhete onde expõe as razões que o levaram a terminar sua vida. Haveria algum motivo para que tais razões postas por Cancellier não fossem genuínas? Não é ele o sujeito que sentiu todo o peso das ações dos agentes públicos que solicitaram, autorizaram e conduziram as ações? Assim, o procurador ao ver ofensa no conteúdo da faixa que diz: “Agentes Públicos que praticaram Abuso de Poder e que levou ao suicídio do Reitor”  (pelo menos no que se refere ao trecho “que levou ao suicídio do reitor”) acaba indiretamente silenciando o próprio Cancellier tirando-lhe o direito, através de terceiros,  de expressar as razões que ele, e somente ele, teve para terminar  sua vida. É importante notar que a alegação de “abuso de poder” é algo a que todo agente público revestido do uso da autoridade e da força fica naturalmente sujeito.  Qualquer cidadão tem o direito de considerar  “abuso de poder” prisões que não sejam efetuadas em flagrante ou que sejam baseadas em evidências tênues e subjetivas. Ora, o que amplifica a menção que a faixa faz a “abuso de poder” é logo a seguir explicado pelo fato lamentável do suicídio, e essa amplificação, na interpretação dos manifestantes, clama “Pela apuração e punição dos envolvidos e reparação dos malfeitos”, como também lemos na faixa. Ou seja, vendo o conteúdo da faixa à luz do bilhete deixado pelo prof. Cancellier ela não deixa de ter uma certa lógica e expressa algo que o próprio Cancellier assinalou em seu bilhete. Cada um é livre para fazer seu juízo sobre a fundamentação ou não do conteúdo da faixa, inclusive a delegada Erika que pode discordar e achar o que bem desejar, mas é impensável achar que o que ela acha deva ser “achado” igualmente por todos.

Tendo analisado se há fundamento no conteúdo das faixas, e cada um julgue como bem desejar, façamos uma abstração quanto a este ponto concedendo que houve mesmo ofensa a honra da delegada. Analisemos então se há justiça na responsabilização feitas pelo procurador aos profs. Ubaldo e Áureo. O procurador alega que profs. Ubaldo e Áureo não agiram para coibir a presença das faixas durante evento no hall da reitoria.

Em relação ao prof. Ubaldo o procurador alega especificamente que

“…competia ao acusado, na condição de autoridade de primeira hierarquia da Administração universitária presente na solenidade, exercitar regularmente o poder de polícia administrativo que coibisse o malferimento à honra funcional dos servidores públicos retratados na faixa, sendo-lhe exigível dever jurídico positivo de imediatamente retirar, ou mandar retirar, a faixa exposta naquela cerimônia oficial por ato de terceiros”

Não, caro procurador, o prof. Ubaldo não tem esse autoridade. Não tem porque o compromisso de qualquer reitor ao ser eleito não é o de valorar opiniões, mas sim de permitir que todos tenham livre opinião. Tivesse o reitor lido a faixa e discordado dos manifestantes, alegando que não concorda com o seu conteúdo, mas não retirado a faixa em respeito a liberdade de expressão, estaria ele sendo alvo da denúncia do procurador? Agora, todos nós sabemos que não existe polícia no campus, e que a segurança da universidade age em defesa do patrimônio. Como pode então o procurador denunciante esperar que o reitor exercesse o poder de “polícia administrativo” de retirar ou mandar retirar a faixa? Afinal, quem iria fazer isso? Estaria o procurador sugerindo que o reitor Ubaldo solicitasse a intervenção da polícia federal? Mas, imaginemos o que poderia ocorrer caso o reitor Ubaldo seguisse as orientações do procurador e mandasse retirar as faixas. Num ambiente tenso e carregado de emoções qual seria a reação das pessoas ali presentes? Obviamente, isso levaria a um conflito generalizado e o procurador deve se lembrar do “levante do bosque” que se mostrou uma desastrada operação da polícia federal anos atrás que, no final, sitiou os policiais federais que só conseguiram sair do campus após a intervenção da polícia militar, isso a custas de muita bomba e correria, que poderia ter deixado pessoas feridas e que não combina com um espaço acadêmico. Assim, para quem conhece a universidade fica claro que a prudência de um administrador público como o reitor e o chefe de gabinete jamais recomendaria que eles fizessem algo como à retirada das faixas dos manifestantes conforme sugerido pelo procurador na sua denúncia. Assim, se o procurador realmente acha que há ofensa na faixa não deveria ele identificar os elementos desconhecidos que a ostentaram ao invés de imputar aos profs. Ubaldo e Áureo algo que eles estariam impossibilitados na prática de fazer?

 Em relação ao prof. Áureo o procurador alega que ele

“…consentiu em deixar-se fotografar/filmar em frente a faixa injuriosa, como cenário de sua manifestação naquele evento, conferindo, consciente e dolosamente, caráter oficial à injúria ali perpetrada”

Mas, isso se constitui um fato objetivo ou trata-se apenas da percepção subjetiva do procurador? Afinal, pode uma denúncia ser fundamentada dessa forma?  Eu vejo um fato preocupante aqui. Concordemos com o procurador e suponhamos que há mesmo ofensa no conteúdo da faixa. Poderia eu condenar alguém que não foi o autor da faixa apenas por concordar com o conteúdo dela? Ou seja, parece que agora administradores públicos têm que tomar cuidado não só com o que falam, mas onde falam, pois se tiver alguma faixa escondida que de algum modo se relacione com o que é dito, pode algum procurador achar que o administrador está dando um caráter oficial ao conteúdo da faixa. Agora, ações desse tipo têm efeitos bastante nocivos, pois, um cidadão comum imagina que se acusações atingem dessa forma o reitor e o chefe do gabinete que não podem se calar diante da consternação e do inconformismo com que a comunidade acadêmica reagiu aos trágicos eventos envolvendo o saudoso prof. Cancellier, o mesmo ocorreria com qualquer um que expresse uma opinião similar. Definitivamente, vivemos em tempos estranhos onde ter opinião parece ser um crime.

 

Uma lição fica para todos nós da comunidade da UFSC. Não podemos nos acuar e deixar de expressar nossa opinião com receio de que o MPF ou uma autoridade policial irá considerar ofensiva a nossa fala e que por isso sejamos alvo de denúncias de algum procurador, pois essas coisas só acontecem por falta de um espírito combativo e de resistência. Aceitar isso é decretar a morte do livre pensamento e trair o público que financia a universidade e espera que cada um de nós nesta universidade seja crítico e independente. Assim, não devemos nos incomodar com aqueles que tentam nos silenciar, mas sim com nós mesmos quando dominados pelo medo e timidez permitimos ser silenciados. Por alguma razão, contemplando tudo isso que ocorreu, os mais variados protagonistas, suas sensibilidades e inconformismo …, me lembro algo escrito por Simone Weil que me parece muito atual, “É impossível perdoar alguém que nos injuriou se sentimos que aquela injúria nos abaixou. Nós temos que pensar que ela não nos abaixou, mas sim que revelou nosso verdadeiro nível”.


Marcelo Carvalho

Professor do Departamento de Matemática