Autoridade consensual não determina a verdade dos fatos

Há um tipo de argumentação nauseante que se ampara  unicamente nos termos de  uma  “autoridade consensual” e que repetida incessantemente acaba se travestindo como verdade. Um exemplo desta argumentação nós vemos no texto do Prof. Gerson Ouriques “Unidos e preparados na defesa das IFE’S e interesses coletivos. Estamos?” quando ele escreve:

“Os colegas devem ter percebido artigos na mídia, depoimentos, comentários e discussões por pessoas, inclusive bem próximos de nós, no ambiente acadêmico, que tentam convencer os leitores/ouvintes que não existiu tortura na ditadura militar no Brasil. Alguns exemplificam baseado em declarações de pessoas que diziam terem sido torturadas e, anos depois, desmentem o que disseram (se disseram mesmo).

Estas deveriam ser processadas com os rigores da lei. É um tremendo desrespeito às pessoas que foram torturadas. Enquanto poucos lutavam por uma democracia, muitos se acovardavam no anonimato, nada fazendo, temerosos de sofrerem represálias ou, simplesmente, concordavam, mas não tinham coragem de se expor. A negação da tortura é uma verdadeira  aberração moral e ética contra torturados e à população como um todo. Deve ser combatida e o período negro da ditadura deve sempre ser lembrado para que possamos estar preparados e, assim, lutar contra as tentativas de minimizar ou, até mesmo, de negá-la”

 

De fato, há relatos de tortura durante o regime militar, algo tão lamentável quanto o terrorismo praticado pelos grupos da luta armada. Agora, de alguns relatos não se pode fazer generalizações sem a devida evidência, sendo este o caso quando se  afirma que a tortura era uma  prática sistemática durante o regime militar.

Desde os tempos de estudante, questiono e desconfio da narrativa intelectualmente desonesta que declara ter havido  tortura sistemática de opositores durante o regime militar que vigorou  entre os anos de 1964 à 1985. Na época de estudante, a minha desconfiança era de ordem prática e se baseava na certeza que aquela “gente arrogante e soberba” que repetia a mesma narrativa de tortura sistemática,  mas nunca apresentavam evidências, só poderia mesmo ser capaz de mentir. Com o tempo, estudando os eventos, percebi que além de arrogantes e soberbos havia também várias contradições e omissões na argumentação deles e, constatado o erro, não é recomendável permitir que pessoas “vendam” ao público uma narrativa inverídica sem nenhum esforço de defendê-la. A seguir, apresentarei algumas evidências que me levam a discordar da tese de que houve tortura sistemática durante o regime militar.

1. Um regime que emprega a tortura de forma sistemática certamente não teria nenhuma contenção em praticar execuções contra seus opositores.

Isso parece ser uma regra geral, difícil de ser contestada, basta ver os exemplos de algumas ditaduras próximas, como a cubana, e as que outrora existiram no Chile e na Argentina. Todas elas apresentaram um número elevado de mortes, algo em torno de dezenas de milhares e também ficaram conhecidas pela prática da tortura de seus oponentes. Assim, destes casos concretos, não é exagero inferir  que regimes que muito matam, igualmente muito torturam, e praticam violência extrema contra quem se opõe ao regime, sendo pouco razoável imaginar que um regime que muito torture não tenha igualmente muito assassinado.

Examinemos então o caso do regime militar no Brasil. Dados da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que é questionada pela sua parcialidade, contabilizam 430 mortos e desaparecidos durante o regime militar (será que inclui também os 130 mortos pelos terroristas de esquerda?). Aparentemente, a CNV  não distingue os chamados “justiçados”, isto é, pessoas que faziam parte dos grupos terroristas e que por alguma razão foram assassinados pelos seus próprios companheiros, nem os terroristas que foram  mortos em confronto direto com os agentes do regime militar.  Assim, imaginemos que essas 430 mortes foram todas decorrentes de tortura pelos agentes do regime, algo pouco provável. Ainda assim, trata-se de um número relativamente pequeno (e que impede generalizações) se comparado com a população do Brasil na época, e também pequeno em comparação com as dezenas de milhares de mortos pelas ditaduras cubanas, chilena e argentina. Assim, qual o critério para se afirmar que no Brasil havia a tortura sistemática diante de um número tão reduzido de mortes? Em que outro país isso ocorreu? Por que o Brasil contrariaria o que seria uma razoável regra geral que aponta tortura e execuções como ocorrendo na mesma escala?

2. Nem todos que alegam ter sido torturados falam a verdade.

De fato, uma jornalista de Brasília conta que um famoso ator global orientava que qualquer um que fosse detido pelo regime mentisse dizendo ter sido torturado [1]. Recentemente, o cantor Geraldo Azevedo alegou que foi torturado pelo general Mourão. Contudo, tal acusação se mostrou mentirosa por um simples erro de cálculo de quem falsamente acusou, afinal, na época em que Geraldo Azevedo  disse ter sido torturado o general Mourão era um adolescente e, portanto, não poderia estar no Exército [2].

Um dos chefes do DOI/CODI de São Paulo, coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, por sua posição destacada e corajosa no enfrentamento e combate aos que queriam transformar o Brasil numa ditadura comunista, tornou-se o alvo do revanchismo da esquerda. Mas, como acreditar nesses relatos contra o cel. Ustra sem considerar o que ele escreveu em seus dois livros onde se defende das acusações de tortura [3], [4]? Até mesmo uma sentença de um tribunal de São Paulo, que declarou o cel. Ustra torturador, perdeu a credibilidade pelo fato de ter se  baseado no depoimento oral de pessoas que, no passado, participaram de grupos terroristas, um fato que demonstra  o nível do revanchismo daqueles que foram derrotados pelos militares.

3. A bolsa-ditadura estimula o relato de casos de tortura

Isto  fica evidente confrontando a explosão dos relatos de casos de tortura com as concessões de indenizações pela “Comissão de Anistia” instalada durante o governo Fernando Henrique Cardoso, algo que se constitui uma farra com o dinheiro público, um verdadeiro esculacho no cidadão que paga seus impostos. Estima-se um total de 40 mil pedidos de reparação. Mas, é curioso observar mais uma vez os dados estatísticos. Se for verdade que houve tortura desta magnitude, então, grande parte deste número teria ocorrido  nas instalações do DOI/CODI, que é onde frequentemente se alega terem ocorrido as supostas torturas. Ora, haviam 9 DOI/CODI operando no Brasil, com um total de 400 oficiais, e desses, o de São Paulo era o maior. Agora, dados examinados pela CNV a partir de relatórios secretos do Exército dão conta que até 1975 passaram pelo DOI de São Paulo 2355 pessoas [5]. Imaginando então que os nove DOI/CODI no Brasil tenham recebido o mesmo número de presos, isso totalizaria 21195 pessoas. E, admitindo o improvável de que todas elas tenham sido torturadas, obteríamos um número de torturados que é quase metade dos 40 mil que alegam terem sido torturados. Ou seja, os números não fecham, o que lança sérias dúvidas se a maioria desses casos de tortura não são fabricados apenas para se solicitar o benefício “generoso” da  chamada bolsa-ditadura.

4. Era a tortura prática sistemática do regime ou seriam casos isolados que se configuram como desvios de conduta de indivíduos?

Documento recente tornado acessível pelo departamento de Estado americano [6] mostra que execuções sumárias eram práticas bastante seletivas e aplicadas apenas a subversivos perigosos. Não obstante, o documento não menciona nada sobre tortura. Obviamente, a não menção da tortura como uma das medidas de enfrentamento a subversivos não a confirma nem descarta, contudo, alguns trechos de conversas dos comandantes militares da época são bastante esclarecedoras sobre a forma como eles atuavam. Vejamos o seguinte trecho do documento,

“… Brazil cannot ignore the subversive and terrorist threat, and he said that extra-legal methods should continue to be employed against dangerous subversives.”

“President Geisel told General Figueiredo that the policy should continue, but that great care should be taken to make certain that only dangerous subversives were executed.”

Chama a atenção o cuidado do texto em enfatizar que apenas subversivos perigosos envolvidos  em ações terroristas seriam alvos das execuções. Ora, isso mostra uma cautela e preocupação dos chefes militares em não se aplicar tais medidas extremas de forma generalizada. Por que razão então um comando militar que demonstra tal cuidado na aplicação da execução sumária demonstraria uma liberalidade no uso sistemático da tortura? Não parece fazer muito sentido.

 

Há pelo menos um ponto em que eu concordo com o que o prof. Gerson Ouriques escreveu, a saber, que  negar que houve tortura é mesmo uma aberração moral e ética, mas, isso se aplica somente em casos onde de fato ocorreu tortura. Também se constitui uma aberração moral e ética negar que houve terrorismo praticado por militantes de grupos de esquerda que faziam a luta armada, e o que é pior, enaltecer a memória de um terrorista como Marighella através de um filme. Assim, há uma óbvia e proposital assimetria ao se falar de tortura da parte dos agentes do regime militar sem mencionar o terrorismo dos que faziam a luta armada, e isso é reflexo de uma aguda ignorância sobre a história do Brasil, ou de uma desonestidade intelectual crônica, pois quase sempre essas pessoas que fizeram a luta armada são postas na condição equivocada de que lutavam contra o regime militar e pela democratização do país, quando na verdade eles lutavam pela abjeta comunização do Brasil. Assim, não mencionar que o contexto de tortura surgiu conjuntamente num contexto de terrorismo em nada serve para ensinar as novas gerações sobre o que realmente estava em jogo no período que se iniciou em 1964. Não que a tortura esteja justificada pelo terrorismo, pois não está justificada, mas sim que precisamos ter honestidade para perceber que uma aberração alimenta a outra e que ambas são igualmente condenáveis. Assim, todo aquele que vê apenas tortura sem ver o terrorismo adota um discurso intelectualmente desonesto que tenta escrever a história de forma deformada.

Espero ter convencido o prof. Gerson Ouriques da necessidade de ir além da mera repetição de argumentos consensuais cuja “veracidade” é atribuída não pela valoração do conteúdo intrínseco dos fatos, mas sim pela pretensa autoridade de quem fala.  Assim, apresentei quatro pontos onde exponho as razões porque não acredito que houve tortura sistemática durante o regime militar. Acredito que houve casos isolados por parte de alguns agentes, mas não como política de estado e admito mudar de perspectiva e reconhecer um possível erro pelo convencimento de um argumento bem construído, mas não pela mera retórica, patrulhamento de qualquer espécie, ou por uma narrativa que se impõe apenas pela “autoridade” consensual que é comum na academia e que implica na pior forma de servidão que é a servidão intelectual. Assim, parece ser um bom conselho o que R. P. Feynman certa vez declarou:

“Authority may be a hint as to what the truth is, but is not the source of information. As long as it is possible we should disregard authority whenever the observations disagree with it.”[7]

 

Seguindo este conselho, eu não vejo razão alguma para  aceitar como verdade algo que uma auto-declarada autoridade consensual de acadêmicos impõe como “verdade” se estamos diante de evidências que põe em cheque tal autoridade. Eu apresentei quatro delas (há muitas outras), alguém se dispõe a debater?

 

Notas

 

[1] http://blogdemirianmacedo.blogspot.com/2011/06/a-verdade-eu-menti.html

[2] https://politica.estadao.com.br/blogs/neumanne/uma-mentira-atras-da-outra/

[3] “A Verdade Sufocada: a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça.”

[4] “Rompendo o silêncio”, https://www.averdadesufocada.com/images/rompendo_o_silencio/rompendosilencio.pdf

[5] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1510200011.htm

 

[6]  https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1969-76ve11p2/d99

[7] “The beat of a different drum: the life and science of Richard Feynman,” de Jagdish Mehra, pag.556.

 

Professor do Departamento de Matemática