Reforma administrativa proposta para Santa Catarina pode enfraquecer ainda mais a Fapesc

A Secretaria Regional da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) de SC vem discutindo, divulgando e enfrentando, desde 2017, a grave crise que atinge os sistemas nacional e estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação (CTEI). Temos chamado a atenção publicamente para o descumprimento histórico (que atravessa os sucessivos governos de nosso estado) do Art. 193 da Constituição Estadual de 1989, que determina: “O Estado destinará à pesquisa científica e tecnológica pelo menos dois por cento de suas receitas correntes, delas excluídas as parcelas pertencentes aos Municípios, destinando-se metade à pesquisa agropecuária, liberados em duodécimos.”

 

Em dezembro de 2018, publicamos novo artigo manifestando nossa preocupação face ao insuficiente financiamento para o setor e colocando-nos à disposição para colaborar com o novo governo “no processo de reestruturar e fortalecer o sistema estadual de CTEI”. Reafirmamos ainda nossa visão de que “o Conselho Estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação (CONCITI) deve ser um órgão plenamente ativo como formulador e avaliador da política estadual de CTEI” e de que a Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de SC (FAPESC) “tenha sua existência e seu fortalecimento permanentemente defendidos, discutidos e aperfeiçoados, enquanto conquista histórica de toda a sociedade catarinense”.

 

Na última terça-feira, 26 de março, começou a tramitar em regime de urgência na Assembleia Legislativa (ALESC) o projeto de reforma administrativa do poder executivo estadual, sob a forma de um projeto de lei complementar (PLC). Sem entrar no mérito dos demais pontos da proposta, que podem trazer mudanças positivas ao Estado, preocupam-nos, nesse primeiro momento, três aspectos referentes às alterações na política estadual de CTEI. Enquanto realizamos uma análise mais detalhada do documento, para a qual já solicitamos o apoio da Procuradoria Jurídica da FAPESC, da Comissão de Economia, Ciência, Tecnologia, Minas e Energia (CECTME) da ALESC e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), gostaríamos de trazer para o debate público os motivos de nossa preocupação.

 

Antes disso, no entanto, faz-se necessário um breve resumo do que conseguimos depreender do conjunto de leis existentes sobre o tema. Salvo melhor juízo, além do Art.193 da Constituição Estadual, transcrito acima, a lei complementar nº 282 de 2005 (que está sendo alterada pelo Art. 162 da atual proposta do governo) hoje prevê que os recursos destinados à pesquisa científica e tecnológica devem ser consignados “aos órgãos e entidades do poder executivo que promovem a pesquisa científica e tecnológica e a pesquisa agropecuária”. Já a lei complementar nº 381 de 2007 define quais seriam estes órgãos: a Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (EPAGRI) e a FAPESC. Finalmente, em 2008, tivemos a publicação da lei 14.328, conhecida como lei da inovação. Em seu Art. 26, seu texto reafirmava os 2% previstos na Constituição e determinava que metade dos recursos seria destinada à EPAGRI, para a pesquisa agropecuária, e a outra metade à FAPESC.

 

Nossas análises prévias têm demonstrado que nem os 2% vêm sendo aplicados, nem a partilha meio a meio vem sendo respeitada, apesar de ambos os pontos serem definidos constitucionalmente. No ano de 2014, a lei 16.382 altera a lei da inovação, introduzindo no Art. 26 as palavras “pelo menos”, estabelecendo a seguinte redação: “O Estado de Santa Catarina destinará à pesquisa científica e tecnológica no mínimo 2% (dois por cento) de suas receitas correntes, delas excluídas as parcelas pertencentes aos Municípios, destinando-se pelo menos metade para pesquisa agropecuária, liberados em duodécimos” (grifo nosso). Tal redação, salvo melhor juízo, possibilitaria, em tese, a alocação de todo o recurso à pesquisa agropecuária, nada sobrando para a FAPESC, o que nos parece no mínimo inconstitucional.

 

Observemos agora uma das propostas do PLC do atual governo. De acordo com o Art. 162 do PLC, o Art. 1º da lei complementar nº 282 passaria a vigorar com a seguinte redação: “A destinação de recursos à pesquisa científica e tecnológica e à pesquisa agropecuária de que trata o art. 193 da Constituição do Estado será cumprida mediante a alocação de recursos aos órgãos e às entidades da Administração Pública Estadual responsáveis pela promoção dessas atividades, bem como pela aplicação efetiva em ações que envolvam ciência e tecnologia realizadas pelos demais órgãos e pelas demais entidades da Administração Pública Estadual.”(grifo nosso).

 

Apresentamos abaixo nossas três principais preocupações com a reforma proposta:

 

1) Um provável enfraquecimento da FAPESC, causado pela nova possibilidade jurídica de que os recursos destinados à pesquisa “não agropecuária” possam ser alocados, sem limites, aos demais órgãos e entidades do governo estadual.

 

A este respeito, notamos que, enquanto na lei 381 de 2007 (que seria quase inteiramente revogada pelo Art. 175 do novo PLC) as atribuições da FAPESC eram descritas em quase duas páginas da SEÇÃO IV, incluindo funções de planejamento, no novo PLC seu papel se limita ao breve Art. 66: “A FAPESC tem por objetivo fomentar, desenvolver e executar a política de incentivo à pesquisa científica e tecnológica, na forma da legislação específica”. Por outro lado, entre as muitas atribuições e competências da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Econômico Sustentável (SDE), consta: “definir a política a ser adotada para a ciência, tecnologia e inovação…”.

 

2) Uma possível diminuição dos recursos totais destinados à “pesquisa científica e tecnológica”, se notarmos que, na segunda parte grifada do texto proposto acima, surge a expressão “ações que envolvam ciência e tecnologia realizadas pelos demais órgãos…”.

 

Diferentemente da maioria dos textos legais hoje vigentes, que se referem, desde a Constituição, à palavra “pesquisa”, esta nova redação parece demasiado abrangente. Podemos imaginar uma infinidade de “ações que envolvam ciência e tecnologia” nos mais variados órgãos do governo, incluindo ações de extensão universitária e agrícola, aquisição de equipamentos ou mesmo simples aplicação tecnológica. Nesse sentido, incrementar o uso de tecnologias na gestão administrativa, nas escolas, nos hospitais ou na segurança pública, por exemplo, drenaria os já insuficientes recursos hoje alocados à pesquisa científica e tecnológica? Uma coisa é “gerar” conhecimentos, outra, bem diferente (apesar de relacionada), é “usar” os conhecimentos gerados aqui ou alhures.

 

3) Finalmente, mas não menos importante, preocupa-nos o aparente desaparecimento do CONCITI. Criado em 2007 pela lei 381, este conselho deveria ser o fórum primordial da política catarinense para a CTEI. Ao longo das quase três páginas do Art. 43 da referida lei, dentre inúmeras competências, consta: “recomendar diretrizes e prioridades para a política estadual de CTEI, respeitadas as características regionais, os interesses da comunidade científico-tecnológica e do setor produtivo, subordinados aos interesses da sociedade catarinense” e “avaliar e opinar sobre os projetos de lei dos planos plurianuais, das diretrizes orçamentárias e dos orçamentos anuais”. A composição do conselho, prevista em lei, é extremamente representativa, incluindo membros dos mais variados setores da sociedade, como a comunidade acadêmica e estudantil e os diversos setores produtivos e políticos. Através da lei de inovação de 2008, o CONCITI passou a integrar o Sistema Estadual de CTEI, como órgão colegiado formulador e avaliador da política estadual de CTEI. Sabíamos que o CONCITI não vinha sendo convocado por seu presidente, o governador do Estado, há algum tempo, e, por isso mesmo, sua real ativação era uma das principais demandas da Carta dos Catarinenses sobre CTEI, assinada por dezenas de entidades em 2018. Salvo melhor juízo, no caso de aprovação do PLC em sua presente forma, ficam revogados todos os artigos da lei complementar 381 que instituíam o CONCITI, sem nenhuma menção a ele na nova proposta, o que caracterizaria sua extinção.

 

Todas estas questões e muitas outras deverão ser objeto de criteriosa análise da sociedade catarinense e das diversas comissões da ALESC que, de uma forma ou de outra, estarão envolvidas com a reforma administrativa. Em reunião do dia 12 de março, o Presidente da CECTME da ALESC, Deputado Jair Miotto, submeteu à sua comissão um requerimento para que a SBPC-SC seja convidada a apresentar seus dados e preocupações em reunião a ser realizada nas próximas semanas. O requerimento foi aprovado por unanimidade. Esta e outras ações junto ao governo do Estado, à FAPESC e à OAB certamente trarão mais luz a esta importante questão, confirmando ou descartando cada uma das preocupações aqui levantadas, de forma que possamos decidir coletivamente a melhor forma de atuar para que, nos próximos quatro anos, a pesquisa catarinense, em todas as áreas, cresça ao invés de encolher.

Secretário Regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência de SC (SBPC-SC)