Conselho Deliberativo do CNPq quer ser ouvido sobre edital de bolsas de Iniciação Científica

“Corremos o risco de ser responsáveis por um retrocesso científico sem igual”, alertam os membros do Conselho em carta ao presidente do CNPq

Contrários à nova chamada pública para bolsas de iniciação científica que excluiu projetos ligados às ciências humanas até julho de 2021, membros do Conselho Deliberativo do CNPq enviaram uma carta ao presidente da entidade, Evaldo Vilela, onde pedem que a decisão seja revista e que cumpra-se o Regimento Interno, que estabelece tal conselho como instância para discussão e aprovação de prioridades do órgão.

Em carta conjunta, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) também reagiram à exclusão das ciências humanas da Iniciação Científica.

Leia a carta na íntegra do Conselho Deliberativo:

Ao Presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),
Ilmo. Prof. Dr. Evaldo Vilela.

Ilmo Sr. Presidente.

O Brasil em tempo de pandemia vem presenciando a relevância dos conhecimentos científicos e das decisões baseadas em dados concretos que permitam gerar soluções que mais se adequem às diferentes características e populações. Concomitantemente, os paradoxais ataques à ciência criam cenários desconcertantes que não devem fragilizar o sistema formal de fomento e organização da ciência nacional.

No processo de fragilização da ciência, ganham força discursos no mínimo questionáveis, que fomentam as dicotomias e distinções entre ciências básica e aplicada; racionalismo e empirismo; teoria e prática, demarcando um momento de retrocesso e contrariando diferentes visões teóricas que buscam ampliar essas discussões.

Considerando o exposto, foi surpreendente tomarmos conhecimento da agenda de prioridades do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) para o período de 2020- 2023, normalizada pela Portaria nº 1.122, de 19 de março de 2020, a qual foi modificada por meio da Portaria nº 1.329, de 27 de março de 2020, que tenta adequar e atenuar a proposta excludente que a agenda impõe. E, registre-se, as alterações inseridas pela Portaria nº 1.329, de 27 de março de 2020, são decorrentes de movimento realizado pelas sociedades científicas brasileiras. Não é necessário resgatar aqui os conteúdos das correspondências enviadas por essas sociedades científicas ao MCTIC e ao CNPq, com os quais concordamos e apoiamos.

Como membros do Conselho Deliberativo (CD) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o que destacamos neste documento é a iniciativa realizada por este órgão de fomento em 23 de abril de 2020. Sem qualquer discussão com os membros do CD, cujas competências são expressas no Capítulo II de seu Regimento Interno, o CNPq publicou em seu site oficial a seguinte notícia: “Iniciação Científica: nova chamada” (https://bit.ly/35LQdVF). Trata-se de uma notícia que tem como objetivo comunicar amplamente a pré-chamada de um futuro edital de bolsas de Iniciação Científica (IC), concebido a partir dos eixos estabelecidos como prioritários pela Portaria nº 1.122. Esclarecimentos posteriores conjuntos do Ministério e da Presidência do CNPq em 11 de maio de 2020 apenas reforçam necessidade de revisão do processo. Uma ação, ao nosso ver, realizada equivocadamente e que trouxe muita preocupação à comunidade científica, da qual somos representantes.

A pré-chamada materializa as diretrizes da Portaria e, assim, reforça as dicotomias e exclusões estabelecidas na agenda do MCTIC. Considerando a gravidade do fato, que exige o empenho do Presidente e Diretores do CNPq em restabelecer a ordem institucional, solicitamos que essa decisão seja revista e, conforme estabelecido no Regimento Interno (Capítulo II, artigo 10), seja ouvido o Conselho Deliberativo.

Em um contexto alarmante como o que vivemos, de restrição orçamentária e econômica, uma de nossas mais importantes agências de fomento, grande responsável historicamente pela formação de gerações de pesquisadores, defensora das ciências básicas e do equilíbrio entre as diferentes áreas do conhecimento, divulgar uma notícia como essa significa para nós um indício claro de retrocesso ao desenvolvimento científico e tecnológico.

É legítimo esperar do CNPq, mais do que de qualquer outro órgão, a clareza de que não há avanço tecnológico desapartado de outras dimensões do conhecimento científico. A tecnologia, assim como a ciência, é uma construção humana, portanto, derivada do espírito do tempo vivido. Isso significa que na base e na tessitura de ambas se encontram o social, o cultural, o histórico, o econômico. Ao longo do processo civilizatório, a tecnologia passou por diferentes concepções, chegando, nos dias atuais, a uma definição na qual sua construção converge ao desenvolvimento da ciência, tornando, em diferentes momentos, ciência e tecnologia faces de uma mesma moeda, inseparáveis. Como fenômeno humano, a tecnologia também é de ordem ontológica, epistemológica, ética, moral, social, cultural, política, ambiental e econômica. Como fenômeno complexo, demanda em sua concepção, aplicação e análise de diferentes conhecimentos científicos, da mesma forma que aciona outros saberes presentes no social.

Assim, se não entendermos o que o contemporâneo nos provoca, corremos o risco de ser responsáveis por um retrocesso científico sem igual, que custará muito a um país como o nosso. Ao contrário do que demostraram as últimas medidas do Ministério e do CNPq, é impossível, na sociedade atual, desconsiderar qualquer ciência, seja ela humana, social, biológica, exata ou natural. Portanto, pautar uma agenda tecnológica significa convocar, inevitavelmente, as diferentes áreas científicas para atuar de forma integrada, sendo elas ciências básicas ou aplicadas.

Para o estabelecimento de uma sociedade na qual os seres humanos serão respeitados como seres insubstituíveis e que, diferente de anularmos nossas condições humanas, reaprenderemos a valorizá-las, o fortalecimento e ampliação das diferentes formas de conhecimento científico muito pode auxiliar-nos. Para tanto, a comunidade científica conta com seus órgãos de fomento e de apoio. É isso que está em jogo: o cumprimento da missão do CNPq, o sentido de sua existência. Considerando a gravidade da situação, que exige o empenho de todos nós, reivindicamos que se faça cumprir o regimento interno do órgão, no qual estabelece o CD como instância para discussão e aprovação de prioridades do órgão. Assim, é necessário trazer para análise desse Conselho o futuro edital de bolsas ICs, bem como outras propostas fundamentais ao desenvolvimento científico e tecnológico do país.

Assinatura dos Membros do CD
Maria Ataide Malcher
Regina Pekelmann Markus
Fernando Galembeck

Imprensa Apufsc