Por que não retomamos as aulas ou a última viagem de Gulliver

Heronides Moura

Gulliver decidiu fazer uma última viagem, antes de retornar definitivamente à sua amada Inglaterra. Depois de enfrentar o vento sul, aportou numa bela ilha de enseadas tranquilas. Indagou sobre o povo que habitava ali e lhe disseram: são os acadêmicos. De fato, todos os habitantes da ilha eram acadêmicos, divididos entre professores, alunos, servidores e os dirigentes. Depois de saborear camarão ao bafo, iguaria servida nas margens das lagoas da ilha, Gulliver se inteirou do que se fazia na universidade. Pôde conversar com cientistas e humanistas muito preparados e com professores dedicados ao seu ofício. Havia alunos oriundos de todos os rincões do distante continente. A única profissão da ilha era a docência, com o auxílio inestimável dos servidores da universidade.

Depois de tomar uma bebida alcoólica muito apreciada por ali, Gulliver já se preparava para retornar ao seu navio e zarpar para a Inglaterra. Sairia com uma boa impressão deste povo acadêmico. Mas seu navio não estava no porto. Não havia nenhum navio no porto. Por alguma causa que ele não chegou a compreender completamente, toda a comunicação com o mundo externo tinha sido cortada. A ilha-universidade estava separada do resto do universo.

Gulliver viu muitos alunos, docentes e servidores angustiados com o limbo em que se encontravam; não havia aulas e a ilha perdia sua razão de ser. Sem o fluxo de informação que vinha do continente, a ilha estava entregue à própria sorte. Gulliver não demonstrava grande preocupação, pois percebera a qualidade intelectual e humana de muitos habitantes da ilha. Eram pessoas inteligentes e razoáveis, saberiam encontrar uma solução satisfatória. Em breve, ele poderia embarcar no seu navio.

Só que Gulliver não tinha conhecido ainda os dirigentes. Era um pequeno grupo, liderado pelo que eles chamavam de Magnífico Dirigente. Gulliver teve grande dificuldade de apreender todas as nuances do intrincado sistema de gestão daquele grupo. Ele imaginou, como inglês simplório que era, que, dada a calamidade que se abatera sobre a universidade, os dirigentes iriam imediatamente estabelecer um gabinete de crise, propor soluções e encaminhá-las ao conselho deliberativo. Ledo engano. Os dirigentes ficaram tranquilamente esperando o desenrolar dos fatos. Nada acontecia na ilha e nada acontecia na gestão da ilha.

Gulliver imaginou, então, que se tratava de um grupo autoritário, que não queria ouvir ninguém. Outro engano. Os dirigentes (em especial o Magnífico Dirigente) prezavam muito a democracia e apreciavam ouvir e consultar distintos grupos ideológicos. Não obstante, esta prática democrática era dotada de uma característica muito peculiar. Os dirigentes, por uma argúcia que escapava ao pragmatismo anglo-saxão de Gulliver, só davam guarida aos setores mais extremados do espectro ideológico. A gestão da crise misturava a revolução permanente e a estagnação mais contumaz. O resultado é que nada acontecia. Esta era a ideologia dos dirigentes: ceder aos argumentos mais radicais de ambos os lados, que se anulavam mutuamente. Qualquer proposta concreta de saída da crise era taxada de insensata. Todos ficavam com medo de propor um plano de metas, um modelo de proteção aos mais vulneráveis, um calendário de ações: podiam ser acusados de desejar a destruição da ilha.

Quando um grupo de professores propunha soluções tecnológicas como meio provisório de romper o isolamento, os dirigentes (com base em seus grupos radicais de apoio) colocavam mil empecilhos e uma série de exigências prévias, que tornavam a implementação de qualquer medida praticamente impossível.

Meses já se haviam passado. Apesar de gostar das praias, do camarão e da tainha, Gulliver quer prosseguir viagem. Ele não suporta mais se enfronhar nos inúmeros pareceres bem fundamentados sobre a situação da crise e sobre como sair dela em um futuro indefinido. Quantos meses ele terá ainda de esperar? O que separa esta ilha do continente? Alguém deve saber muito mais do que ele sabe; algum elemento desta teia deve estar escapando à sua compreensão. Afinal, ele não passa de um estrangeiro.

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