A fraude sob a folhagem

*Por Fábio Lopes da Silva

Quem colocaria em dúvida a grandeza de Gilberto Gil? Bem, eu a coloco. Não que eu considere a sua obra um total embuste, mas ela me parece estar muito longe de merecer o culto que a cerca. Gil é o que é: um compositor talentoso, no más. Eu ia dizer ‘compositor popular’, mas imediatamente me dei conta de que isso não é verdade. Seu cancioneiro é apreciado e conhecido por uma pequena parcela da população, não pelo povo. E devo acrescentar que, se essa pequena parcela da população – essa elite, se quiserem – admira tanto o artista baiano, é menos pelas virtudes intrínsecas de suas letras e músicas do que pela profunda falta de cultura literária e musical que campeia no andar de cima brasileiro e embota o juízo estético das pessoas. É um tipo de desconhecimento só discretamente mais perdoável do que aquele que, em outros segmentos dessa mesma elite, faz com que Gil seja desprezado em favor de cantores sertanejos e outros bichos. A arte do autor de Expresso 2222 não é de se jogar fora, mas, por óbvio, é infinitamente inferior em densidade, tensão e complexidade à de um T. S. Eliot, um Walt Whitman, uma Sophia de Mello Breyner Andresen. Deveríamos ter clareza de que, em matéria de capacidade poética, Gil só teria lugar lá pela série D da literatura mundial. Ele é uma espécie de Guarani de Palhoça das Belas-Letras. Mesmo se nos ativermos ao campo mais restrito da música brasileira, há quilômetros de compositores à frente de Gil na fila do pão: Manacéa, Monarco, Ivone Lara, Candeia, Paulo da Portela, Noca, Sombrinha e Paulinho da Viola, apenas para citar meia dúzia de gigantes de cujo trabalho a chamada MPB é, aliás, em larga medida, uma apropriação indébita.

Minhas restrições a Gil também dizem respeito à dimensão ético-política. Para esquerdista, ele não serve – e é mesmo estranho que a esquerda nacional, sempre tão vigilante quando o assunto é cancelar CPFs por razões ideológicas, conviva tão bem com esse bom e velho conservador palavroso em quem o olhar inclemente de João Cabral (que, aliás, detestava música) decerto detectaria “o simplesmente folhagem, folha prolixa, folharada, onde possa esconder-se a fraude” (no mesmo poema, o poeta pernambucano desfirará outra imprecação perfeitamente aplicável a Gil: é preciso livrar-se, escreve ele, “de toda uma crosta, resto de janta abaianada, que fica na lâmina e cega seu gosto de cicatriz clara”).

No terreno moral, cabe mencionar ainda os muitos pecadilhos de Gil na sua relação com a coisa pública: o seu apreço por cargos na burocracia estatal, a sua propensão e a de sua família a abiscoitar verbas federais (by the way, Bela Gil, sabe-se lá por que cargas d’água, estava cotada para integrar a comitiva de Lula que vai à China).

Fábula pouco edificante: contou-me um cineasta brasileiro – cujo nome não declinarei nem sob tortura – que à época em que estava para lançar seu mais celebrado filme, cópias pirata da obra vazaram e circularam Brasil afora. A família Gil teria tido acesso a um desses DVDs clandestinos e achado por bem exibi-lo em uma sessão doméstica para uma seleta plateia de celebridades. O cineasta descobriu o que estava acontecendo e não teve dúvidas: foi à casa do compositor. “Vim pegar meu filme”, anunciou ele quando a porta se abriu. Gil era então ministro da Cultura.

Vocês bem sabem por que estou aqui a gastar palavras com essas miudezas. Recentemente, como um raio em céu azul, alguém na Câmara Municipal de Florianópolis propôs dar a Gil o título de cidadão florianopolitano, como uma maneira de repará-lo por sua detenção na cidade por porte de maconha no metafísico Ano da Graça de 1976. Mercê das guerras culturais que atualmente substituem a política no
Brasil, a indicação foi indeferida por bolsonaristas de plantão. The end. Sobem os créditos.

Sobem os créditos? Não no Brasil, não no Grupo Escolar Universidade Federal de Santa Catarina. Embora – sob o silêncio constrangedor da reitoria, do sindicato de professores e da comunidade universitária em geral – a instituição esteja literalmente em frangalhos e vendo seus cursos de graduação e pós minguarem, encontramos tempo para provar o quanto somos justos, nobres e bons, movendo mundos e (principalmente) fundos para salvar a reputação de Gil: em breve debateremos e com toda certeza concederemos no Conselho Universitário o título de doutor honoris causa ao ex-ministro.

Como disse uma colega de universidade, “Particularmente voto contra porque minha baiana preferida é Bethânia, mas considero a proposta extremamente coerente com tudo que está acontecendo. Nada mais coerente do que se preocupar em entregar título de doutor a um artista consagrado e milionário enquanto a UFSC está caindo aos pedaços com surto de diarreia [ela se refere aos milhares de casos de intoxicação intestinal na UFSC, possivelmente por causa da qualidade da água oferecida nos bebedouros da instituição]. Acertadíssimo. Certamente haverá muito dinheiro pra fazer uma cerimônia à altura. Tenho certeza de que também não faltarão recursos pra trazer políticos de destaque, e os interessados terão a oportunidade de fazer muitas selfies para divulgar no ND+. É precisamente o que precisamos pra reabilitar a imagem da UFSC com o povo catarinense e trazer mais alunos. Perfeito.”

É impressionante que o bolsonarismo siga pautando dessa maneira a vida pública e intelectual no Brasil. Aliás, é isso o que o bolsonarismo sabe fazer: gerar falsas crises que nos desconectam dos problemas reais e, no limite, destroem a própria ideia de futuro. Mas os que à esquerda e ao centro caem nessa conversa têm bons motivos para fazê-lo: quem não preferiria disputar campeonatos de pureza e castidade moral com ogros a se responsabilizar por criar soluções para prédios sem pintura, multidões de aparelhos de ar condicionado inoperantes, instalações elétricas por um fio, falta de água em várias edificações, água contaminada em outras, evasão escolar crescente, queda vertiginosa no número de ingressos de alunos e outras encrencas que afligem a Universidade e hoje a colocam a um passo do colapso?

Desde 2018, tenho a honra de colaborar com um professor da Universidade de Yale que, na semana passada, estava falando ao Conselho de Segurança da ONU sobre a invasão da Ucrânia. A uns milhares de quilômetros de lá, no mesmo dia, cá estava eu inadvertidamente envolvido em candente embate ideológico sobre o sexo de anjos baianos com um vereador do PL que atende pelo curioso nome de Maikon da Costa. Cada um com seu cada um. Eu pensei em mim, eu pensei em ti, eu chorei por nós.

* Fábio Lopes da Silva é professor do DLLV e atualmente dirige o CCE/UFSC