A concordância como erro e atraso

*Por Edmundo Lima de Arruda Jr.

Você concorda comigo? Que bom, estamos do lado certo da vida (ou da história, para os mais politizados) . Será?

Você já parou para pensar como somos feitos para aceitar o que já nos parece aceitável, lógico ou não? Sempre queremos ouvir o que de certa maneira queremos ouvir, ver, sentir. Ou descobrir algo novo que reforce ou atualize uma compreensão já consolidada ou algo enraizado no pré-compreendido? Mudar é sempre enfrentar muitos obstáculos, por vezes, significa esperar e sair de enlutamentos individuais cada vez mais sociais.

Em conversas com amigos ou em discussões acadêmicas. Em papos políticos ou nas terapias. O espírito de mente costuma querer a confirmação, ou enunciação de algo já anunciado em outra fórmula ou forma. Dá a sensação de conforto e de alguma maneira, de privilégio. Afinal, são os eleitos para ver e sentir as experiências do alto da colina.

Os seletos do clube do êxtase dos partícipes de algum grupelho, igrejinha ou panelinha. Quanto mais seletiva, por preço ou qualidade, melhor a sensação da drogadicção. A propósito, um parêntese. O Senado acaba de aprovar a criminalização de todas as drogas ilícitas, distanciando ainda mais representantes e sociedade. Encerradas as votações, bem provável o festejo, comemorações clandestinas com muito viagra e sexo, música sertaneja e drogas lícitas e ilícitas, quem sabe? A razão cínica é a mãe dos moralismos. Volto à concordância.

Sim, concordar é estar não somente num dado horizonte, de grupo, ideia, ideologia. É sentir-se pertinente aos escolhidos, por sorte ou por esforço, de algum panteão ou mirante dos que melhor conhecem ou vivem. Concordar é agregar algo a algo que já não precisa de agregados mas de partilhamento de distinções: de ser do mesmo clube, time de futebol, confraria.

O hospício da política no qual estamos conduziu à redução da rica e necessária pluralidade de pertencimentos e sonhos drasticamente ao estado de alienação geral provocada pela condição maniqueista inesgotável do ser, por exemplo, lulopetista ou bolsonarista. Os prejuízos à subjetividade e à liberdade dessa dicotomização/colonizaçâo da vida na má política são evidentes e implicam em consequências nas lutas por igualdade e fraternidade. Mas a gênese desse convulso processo social é mais profundo.

Tudo começa desde cedo com os ensinamentos de família e de igrejas, e na escola, quando fomenta-se o senso comum, seja ele mais ou menos Comum a todos. No senso comum dá-se, o que é muito ou até mais importante, o conjunto das impressões da psique digital de cada um, em conformidade com o que é necessidade de reprodução. Aqui as possibilidades de compatibilidade ou não entre senso comum e o Comum variam de acordo a um imaginário (instituições) capazes de ordenar e controlar as forças de um simbólico mais primitivo.

Na regressão em curso o leque plural do e senso comum tendem a distanciar-se do Comum, ou do campo mínimo de mediações para a convivência ou reprodução das condições de sobrevivência de todos os envolvidos. Mas não tenhamos ilusões com a pressuposta ruptura de contratualidade fundada num mínimo ético da distribuição de direitos humanos, progressiva e cumulativamente. Somente há desilusão para quem criou ilusão.

Poucas sociedades lograram graus de liberdade e democratização de habilidades e oportunidades. A democracia liberal tão declamada como modelo de organização social em progresso nunca foi uma realidade para noventa por cento do mundo. Mesmo no séculos XX conta-se nos dedos as o sociais democracias realmente existentes, hoje decadentes. Mesmo assim, os séculos após 1789 foram de acirramento de colonialismos de todas as cores. Ganhos do Wellfare State e dos socialismos reais dependeram do dito e do não dito nos seus imperialismos e nas suas geopolíticas de violência. Deixo o macro para voltar ao micro na questão da concordância como autoengano e pré-moderno.

Com o fim da segunda adolescência, por volta dos trinta e cinco a quarenta anos, os sentidos e alcances básicos do ser humano já se cristalizaram. Ninguém mais vai tentar me convencer que quiabo é saboroso. O que ficou de impressão na educação e na vivência de cada um demarca territórios de hábitos e vida.

O charuto entorta a boca e o charme dos que apreciam chupar o cilindro do tabaco. Ou comer buchada. Gosto é gosto. Aprender a apreender é fixar em algum lugar do cérebro. Há regras, algumas regras. O fétido é fétido mas há a patologia dos que amam cheirar bosta no capim e a própria flatulência. Dizem que James Joyce adorava. Mas o que há de mal na aproximação de algo que já não se encontra próximo, mas amalgamado em nossas consciências?

Como somos obrigados a viver em territórios cada vez menores e mais disputados, construímos nossos rivais, sejam reais ou fantasmagóricos. Isso nos ajuda a criar liames sociais, mormente em face da insegurança crescente. Adversários tornam-se inimigos. Tentamos expulsá-los, matá-los, eliminar suas crias. É o que testemunhamos nos tempos bárbaros: ideias e convicções tornaram-se coisas certas ou erradas, divinas ou diabólicas, ou satanizadas como perigos comunista ou fascista. Tolerância com o outro que pensa diferente? Divergência como algo natural entre pessoas e grupos civilizados? Piadas.

Então penso nesse tempo louco que se projetou na inteligência como “pós-verdade”. No meio intelectual o caos social vê-se refletido, entregando substratos ou detritos de ideias incapazes de dar alguma unidade para compreender e agir no seu entorno imediato. O futuro ficou refém do novo demiurgo, a “inteligência artificial”, entre outras crendices, sob protestos de setores saudosistas de um passado que nunca existiu.

Esse tempo biruta não poupa ninguém. Pense nas fake news , memes e outras maneiras tolas de “politizar” alguma situação, quando queremos agradar nossas tribos e enfurecer nossos desafetos. Mas cada um escolhe seus deuses e demônios segundo as fatias de modernidade, pós-modernidade ou pré-modernidade que lhe tocam, por bem ou por mal, nos entrechoques das distintas condições ou escolhas dadas nas esferas do mundo da vida.

Quando a esquerda elege Karl Marx e discípulos, a direita Friedrich Von Hayeck (ou Ludwig Von Mises), como Salvadores do mundo, opera-se a natural simplificação de teses para uma mediação possível capaz de atingir indivíduos, orientando- lhes vidas e destinos. Nessa operação extirpam-se potências conceituais em favor do pragmatismo nos encaminhamentos das lutas por poder. Daí decorre a difusão do leninismo dissimulado e encalacrado na vulgata stalinista e o interminável cordão de leguleios das receitas neoliberais dispersos nas agências de acumulação financeira. O inverso parece ocorrer no mundo acadêmico quando retorna-se, em nome da ciência (?) ao verdadeiro Marx (com escolha entre o jovem e o velho filósofo de Trier) ou ao seu mais credenciado seguidor, uma missão impossível, pois belicamente gravada por muralhas léxicas. Não muito distante temos a lacanagem com Freud da parte do autor e pastores dos indecifráveis Seminários. Por aí vai a busca por novas Revelações em textos sagrados. Sem contar a fé nos modismos.

Hoje fala-se de a anarcocapitalismo com ares de progresso da liberdade e da China como grande modelo socialista de mercado a ser seguido por quem anseia por emancipação. Alguns se apressam em escolher uma ou outra receita de bolo.

À parte essas amputações que solapam a relação não patológica entre pensamento e ação, temos a revolução menos impactante (felizmente ou não) – por padecer de fraticídio ainda mais intenso como retomada na crença no indivíduo: a psicanálise, embora aquém da força do cristianismo e inalcansável sem uma vulgarização (sentido Ilustrado) a exigir um grau cultural mais elevado.

Diferentemente do marxismo e do liberalismo, com os quais pode confrontar ou confluir, a psicanálise é uma poderosa descoberta científica – ou filosófica, ou crença na qual dispensa-se a verificabilidade (ou refutabilidade) herdadas das luzes positivistas, deslocando-as para obscuro terreno do inconsciente. No limite da apropriação no mercado com oferta de milhares de analistas, temos na ambiance dos divãs algo próximo a uma ditadura do inconsciente fundando uma espécie de positivismo freudiano, ambos em prejuízo do fundador da psicanálise. A progressão geométrica de um certo neopentecostalismo da prosperidade nos moldes de “fast religions” é o avesso da racionalização freudiana, dando de goleada na conquista processual das almas carentes. Algo que não pode facilmente ser condenado em termos éticos. Na falta de Estado a sociedade civil se organiza de sua maneira. Todos lambemos nossas feridas.

Despiciendo exemplificar na continuidade do argumento segundo o qual a concordância hoje implica em ampliar erros e atrasos. Ter consciência do fato já é um bom começo para construir outros acordos semânticos, mas dialógicos é menos autoritários. Daí encerrar como este artigo no primeiro parágrafo: “Você concorda comigo? Que bom, estamos do lado certo da vida (ou da história, para os mais politizados) . Será?”

*Edmundo Lima de Arruda Jr. é professor titular aposentado da UFSC, doutor pela Universidade Católica de Lovaina. Autor de mais de 30 livros. Ex-coordenador Nacional do Movimento Direito Alternativo (MDA). Ex-presidente da Apufsc-Sindical 1988/1990. Fundador e Sócio do Centro Universitário Cesusc.