Lembrar para esquecer

Por Fábio Lopes*

Eu pensei muito se deveria me pronunciar sobre a mudança de nome do campus. Digo isso porque hoje a UFSC está entregue a uma burrice voluntária tamanha, a uma tal incapacidade de reflexão e a um tal lixo demagógico que qualquer contraponto racional às teses dominantes é imediatamente reduzido ao silêncio pela vaia, pela violência, pela pressão do rebanho, pela metralhadora giratória das ofensas e classificações estanques e maniqueístas.

Mas resolvi que deveria tratar do assunto mesmo assim, porque esse é o dever do intelectual. Abraçar a reflexão sistemática sobre temas candentes é minha vocação. Estou há quarenta anos metido nessa história. Não ia ser agora que eu renunciaria ao meu ofício.

Historiadores do futuro – se até lá a UFSC ainda for um objeto digno de estudo, o que talvez não seja o caso, dada a nossa atual marcha acelerada para a irrelevância – terão dificuldade de explicar o que hoje se passa nesta instituição esquecida por Deus.

Terão dificuldade de compreender, por exemplo, como boa parte dos defensores da mudança do nome do campus ao mesmo tempo apoia e protege uma gestão cujos mais altos membros estão em festas de lançamento do livro em defesa do Prof. João David Ferreira Lima ou ganham medalhas com o nome do tal – como é mesmo que eles dizem? – “reitor X-9”. É um apoio ainda mais estranho quando se considera que o reitor atual não tem opinião conhecida sobre nenhum assunto polêmico – inclusive a mudança do nome do campus –, ao passo que a vice-reitora mal é vista na UFSC, já que, somando férias, licenças e afastamentos, passou cerca de um ano (um terço de seu mandato!) longe do cargo.

Historiadores do futuro terão dificuldade de compreender como, em uma sessão supostamente dedicada à preservação da democracia, tantas regras do Conselho Universitário – quer dizer, as regras que asseguram a vigência da democracia naquela Casa – foram tão abertamente violadas. Em particular, eles certamente terão que dar tratos à bola para entender como, sem ser conselheira, a titular de uma secretaria voltada ao aperfeiçoamento institucional furou a fila de inscrições exclusivamente destinada a conselheiros, arrebatou o microfone, fez ameaças a terceiros e… saiu aplaudida.

Estamos na nau dos insensatos, caso não tenham percebido.

Caros, a vida é mais complicada do que as nossas palavras de ordem presumem, caso também não tenham percebido. 

Como eu disse há pouco, há quarenta anos luto para ser um intelectual. E ser um intelectual, como observa Foucault no prefácio a O Uso dos Prazeres, é pensar diferentemente, na contracorrente.

Eu já falei muitas bobagens na vida. E vou continuar a falá-las. É um risco que um intelectual corre em seu dever de pensar diferentemente. Mas algo que vocês nunca vão me ver fazer – porque isso é uma coisa que a um intelectual está proibida – é repetir lugares-comuns. Se um lugar-comum teima em querer sair da minha boca, eu conto até dez. Até mil, se necessário.

Assim é que vocês jamais vão me ouvir dizer coisas como “é preciso lembrar para não repetir”. Sabem por quê? Sobretudo porque, a par de ser uma platitude horrendamente vulgar, isso simplesmente não é verdade – ou, ao menos, não é sempre verdade. A rigor, muitas vezes é mesmo completamente falso.

É perfeitamente possível lembrar-se tortamente das coisas. Ou lembrar-se delas parcialmente. E não há nada pior para o futuro do que má história. 

Do mesmo modo, paradoxalmente, é possível lembrar para esquecer. Querem um exemplo? Considerem todas essas homenagens ao Prof. Cancellier.  Um número considerável de pessoas hoje presentes nas mesas e plateias de eventos em honra ao reitor morto estava onde quando ele mais precisava delas? Eu lhes digo: tremendo de medo debaixo da cama ou mesmo torcendo para ele se ferrar.

Lembrar-se do Prof. Cancellier é, assim, para muitos, esquecer, apagar a própria covardia, a própria canalhice. 

Temo que algo parecido esteja acontecendo na UFSC hoje, na esteira desse projeto de mudar o nome do campus. Inadvertidamente ou de má-fé, muita gente boa, encharcada que está pela mediocridade política do tempo em que vivemos, se entrega de corpo e alma à causa de excomungar o Prof. Ferreira Lima por motivos duvidosos. De minha parte, modestamente peço que considerem o gritante contraste entre, por um lado, essa paixão pela mudança do nome do campus e, por outro, a indiferença, a impotência e a passividade dessas mesmas pessoas diante da destruição a que o campus mesmo está sendo submetido graças a causas externas mas também a causas internas, aliás bem próximas de nós.

Essa força moral toda em nome da retirada do nome do Prof. Ferreira Lima seria louvável se ela não correspondesse ao silêncio ou, no mínimo, à exuberante timidez diante de outros assuntos igualmente importantes. Não posso então deixar de aventar aqui a hipótese de que a função dessa paixão por lembrar a atuação do fundador da UFSC é ocultar – esquecer, se quiserem – a nossa inação frente ao presente e a nossa imensa irresponsabilidade em relação ao futuro.

*Fábio Lopes é diretor do CCE/UFSC

Artigo recebido às 11h13 do dia 6 de maio 2025 e publicado às 11h57 do dia 6 de maio de 2025