Maninho

*Por Fábio Lopes

Nêmesis, romance de Phillip Roth, se passa em Newark, Nova Jersey, no verão de 1944.

A cidade está às voltas com uma epidemia de poliomielite. Na época, as formas de transmissão do vírus ainda eram desconhecidas. O primeiro imunizante contra a doença só começaria a ser aplicado na década seguinte.

A certa altura, um dos personagens, Alan Michaels, um garoto judeu de apenas 12 anos, acaba infectado. Menos de quatro dias depois de apresentar sintomas, ele morre.

Seus dois irmãos mais velhos estão nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial, e o pai se pergunta como vai dar a notícia a eles. Chama a atenção, em todo caso, o fato de que ambos estão vivos, ao passo que o menino está para sempre preso a “um caixão de madeira sem adornos”. Estranha ironia: a morte colhe não os combatentes expostos a riscos inenarráveis mas justamente o único protegido dos três, uma criança cercada de cuidados e do amor da família.

Em um famoso livro sobre a memória da Primeira Guerra Mundial, o historiador Paul Fussell se refere à “arbitrariedade da sobrevivência na guerra”. Ora, o destino de Alan Michaels e de seus irmãos em Nêmesis nos põe a matutar se o termo arbitrariedade não deveria ser aplicado à vida em geral, não apenas aos que se equilibram no fio da navalha dos conflitos armados e outras grandes tragédias humanas.

Esses pensamentos todos vieram à minha mente depois de receber a notícia do acidente automobilístico que levou o querido Maninho, professor de medicina da UFSC e fundador da maternidade do HU.

O pai de Alan Michels não compreende a morte de seu filho. Nós tampouco conseguimos dar sentido ao fato de que uma pessoa evidentemente tão boa como o Maninho nos deixa assim do nada, bestamente. Deus não via o seu comprometimento com a medicina e a docência? Deus não testemunhou os plantões que ele dava em hospitais públicos até os 65 anos, uma idade em que os médicos costumam ficar bem longe das madrugadas insones em ambientes insalubres e desconfortáveis? Por que ele? Logo ele, que já enterrara um filho?

Há menos de duas semanas, pranteávamos a morte do Prof. Rodolfo, a quem a UFSC, em ato de suprema mesquinharia disfarçada de superioridade moral, negou o título de professor emérito.

Por ocasião de sua perda – e perplexo com o fato de que os que lhe recusaram a honraria tiveram a petulância de homenageá-lo depois de morto –, escrevi que a universidade que conheci e à qual dediquei os meus últimos trinta e um anos desaparecera para sempre.

Morre agora o Maninho, como que a confirmar que a velha UFSC já não mais existe. O que está vindo em seu lugar não se anuncia como coisa bonita de se ver.

Lembrei-me de que encontrei o colega agora falecido há um pouco mais de um mês, no Berinjela, um dos poucos restaurantes em torno do campus a ainda sobreviver ao declínio da vida social e intelectual em uma UFSC cada vez mais vazia e dispersa.

Lembrei-me de que, na ocasião, ele me presenteou com aquele sorriso que era sua marca registrada, com oitenta e cinco dentes à mostra.

Lembrei-me do abraço que nos uniu.

Eu não sabia que seria o último. Mas foi intenso e caloroso, como convém a quem ama a vida que tem e o lugar em que trabalha.

*Fábio Lopes é professor do CCE/UFSC

Artigo recebido às 13h31 do dia 27 de julho de 2025 e publicado às 11h30 do dia 28 de julho de 2025