*Por Edmundo Lima de Arruda Jr.
Este pequeno artigo** tem um propósito limitado, podendo ser julgado intempestivo em face da delicada situação política na qual da crítica pública exige-se um certo cuidado redobrado, para não correr o risco de servir às forças totalitárias. A atenção exige duplo esforço: de não não repetir o passado e de não desperdiçar um precioso tempo para ações transformativas.
Grandes derrotas da esquerda deram-se por repetição de visões anacrônicas ou acríticas na ação política. Sob o libelo pejorativo de reformismo desde Stalin, acumulam-se amputações culturais nas intervenções revolucionárias. “Não colocar azeitona na empadinha da burguesia” , me dizia Frei Betto ao palestrar sobre a queda do muro de Berlim em 1889 (UFSC) . Será? Remar contra a maré é preciso.
As reflexões sobre o tema indicado na epígrafe deste pequeno texto são absolutamente preliminares, portanto, superficiais, mormente se considerar-se o momento do maior julgamento da história republicana. Trata-se de um escrito oferecido aos que se preocupam e lutam por uma boa vida social levando em consideração que o que somos hoje: uma sinuca de bico que ajudamos a fundar, todos os protagonistas e destinatários da política. Os problemas, impasses e dilemas não decorrem somente das forças heterônomas. Tampouco dos que se encontram no outro time. Nosso hoje somos nós na história do processo social e seus principais protagonistas. Mas voltemos ao ponto da boa vida social. Que bicho é esse?
É dizer, vida social de sociabilidades solidárias, afirmativas do que se possa, ainda, denominar de Sociedade, num tempo louco em que a sensação é a de que ela se encontra enferma. Sem ilusões. A Sociedade profunda talvez nunca tenha existido, mas é certo que nos afastamos dos indicadores mais expressivos do seu ideal. A barbárie está goleando a civilização. O genocídio de Gaza é o marco e a prova mais imediata do imenso desafio moral de nosso tempo. Mas o jogo pode ser revertido? Talvez. A história é possibilidade(s). Ainda não mataram a capacidade de sonhar, mas estão tentando…
A Sociedade idealizada pressupõe como vital a partilha de um Comum hoje esgarçado. Nesse Comum (mais ou menos retórico, mais ou menos normativo) a pluralidade de necessidades e desejos mantinha-se historicamente no desenho de uma unidade, conforme e em essência como núcleo mínimo de reprodução. Reprodução tomada na forma de código (racionalidade normativa) aceito como ordem eficacial legítima de produção social de vida. Trata-se de condição da legalidade normativa do Direito, sobretudo, da cultura necessária à convivência adequada de todos os partícipes: pessoas, organizações, natureza. Esse esboço de unidade e vida moderna está muito desbotado. Valores universais foram vulgarizados nos dois sentidos. A potência libertário-emancipatória subsumiu-se à masmorra dos interesses dos que detém mais dinheiro e poder. O fetiche da mercadoria é o valor Supremo?
Não se trata de padronizar e hierarquizar valores (e senso comuns) que envolvem e movem indivíduos e/em agrupamentos (sociedades no sentido restrito ou comunidades). Valores ocidentais (por certo, d’onde seus contextos e textos) com alta densidade diferencial devem convergir no que lhes é Comum, sob pena de gerar a corrosão nos liames básicos de convivência. Esta possibilidade encontra-se implícita no reconhecimento de um núcleo possível e necessário de imaginário interativo. Este, sendo histórico, configura em toda sociedade humana, e com mais complexidade, as sociedades modernas.
Sociedades modernas que se construam além das modernizações industriais e pós-industriais, apontam para um outro universal nos jogos de vivência, permitindo a singularidade afirmativa de um conceito de modo de vida. Modo de desenvolvimento na pluralidade de reconhecimentos compatibilizados, multiculturais e interculturais nos seus cruzamentos intercontextuais. Este processo é comunicação e pressupõe novas normas (culturais e jurídicas) e Normatividade nova, apropriadas para escolhas na qual o egoísmo do contrato natural e primitivo subordine-se na vida em Sociedade, .ou sociabilidade das o inssociabilidadez, com Raf Dahrendorf. A questão ética aqui emerge nos diagnósticos e prognósticos. Para escolhas. Romantismo tolo e idealização estúpida? Não. Qual a saída? Talvez um resgate-esperança. Numa neomodernidade .
Em uma palavra, o Universal não morreu por suicídio ou assassinato, pois em franca reconfiguração. Agora em busca de um formato menos grandioso e eloquente na defesa de certa teologia moderna, pois tomado mais modestamente como núcleo de reprodução vital Comum, de acordo a um universal possível, presente naquilo que todas as tribo necessitam minimamente para sobreviver na sociedade complexa. O genocídio em Gaza e as ocupações da Ucrânia registram o maior desafio moral da história deste século. Como superar o terror e reimaginar formas societárias da política e do mercado na direção de ordens de vida mais harmoniosas? Tentando, resistindo.
É o fardo ou condição de sentido particular pressuposto na legítima vivência eletiva (de afinidade legada ou construída). Uma condição de reprodução capaz de garantir e se garantir diante de territórios compatibilizados em seus fluxos de transversalidade cada vez mais convulsos. Uma tarefa impossível? Segundo Weber, devemos tentar o impossível para lograr o possível
É o desafio de sociedades (comunidades concretas) ) e da Sociedade (normativamente pensada) repensarem divergências e tolerâncias em face de uma singular Ordem diante de tantas (des) ordens em busca de Ordem. Inegável a progressão de tribos radicalmente diferentes na afirmação de identidades velhas e novas. Uma outra normatividade é pressuposta numa estranha situação na qual se avolumam as anomias por falta de referências (paradigma de Durkheim) ou ausência delas (paradigma de Dahrendorf). As comunidades defrontam-se com esses desafios muito mais profundos que aqueles comumente situados como choque de ideologias ou visões de mundo.
O que podemos situar sociológicamente quando observamos o protagonismo de Silas Malafaia no bojo do público evangélico – e no contexto político brasileiro atual, merece uma crítica não viciada pela polarização. O bode expiatório não é exclusivamente um Outro fora de nós, vale dizer, um fenômeno isolado de um complexo processo social envolvendo história, historicidade, conflitos sociais e seus principais atores, costumes, tradições e transformações culturais, religiões e igrejas, sensos comuns, política e Comum.
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A questão de fundo não é a do homem que afronta a República, Silas Malafaia, mas como ele encarna em sua pessoa milhões de indivíduos. Indivíduos que, objetivamente e por razões conhecidas – ou a serem pesquisadas, se sentem inseguros, medrosos, descrentes nas instituições, na política, sem esperança no futuro. Eles passam a apostar, com carga emotiva de ressentimentos muitos e não raro de ódio explicito, em líderes salvadores da pátria de caráter e tendências absolutamente anti- democráticos, caso do pastor referido.
Trump e Bolsonaro são alguns caricaturas grotescas dessa direita conservadora tosca e truculenta. Ela sempre existiu mas radicaliza-se pelos extremos na medida em que a direita liberal perde espaços ou mutaciona-se, no limite, na direção totalitária. Ela galvaniza e agrega elites e classes sociais diversas, conquistando também alguma simpatia em grupos d’antes mais à esquerda, em várias dimensões da vida.
De outra forma o problema-Malafaia remete à indagação sobre qual a gênese social, cultural e políticac permite a recepção de discursos autocráticos, anti-republicanos e no fundo anti-cristãos. Como se estabeleceu essa profunda conexão entre ideias e consciências subjetivas de setores sociais significativos, evangélicos ou não, empurrando-os para as ruas com as bandeiras cada vez mais próximas da ultradireita e até do nazifascismo? Hoje aqueles religiosos sequestraram dos antigos coletivos populares a legitimidade para realizar movimentos sociais de massa. Tendência talvez reversível, mas dominante, resultante de um desgaste das esquerdas e de crise social multifatorial mais ampla.
Outra questão, relacionada à primeira. Pouco adianta a necessária advertência à massa de crentes sobre a urgente consciência de seus falsos profetas. Malafaia é um dos pastores mais respeitados no meio evangélico, preparado, carismático, comandando milhões de crentes. Pior, seu poder parece magnetizar outros setores sociais não evangélicos, mas irmanados na descrença institucional e cultural. Um crescente público identifica-se a Malafaia na palavra, curiosanente, na proporção dos seus surtos histéricos. Malafaia também logra liderar muitos outros falsos moedeiros em tempos doentios de certa paralisia cognitiva e relativa dissolução dos canais institucionais de intermediação social.
O tempo da polarização extremada é assim, simplifica visões de mundo e ideologias, o que instiga, pelas extremidades, o reforço de tendências de autodefesa e reagrupamento por pertinência a valores “últimos”. Todavia, nesse torvelinho de confrontos reais e falseados (sob logarítmos no tempo digital) há se considerar no terreno ultraconservador que ele é atravessado por demandas e desejos legítimos. Desdenhá-los é falsificar as percepções das pessoas em seus quadros culturais ameaçados.
Esses coletivos nos quais se replicam pequenos malafaias nas esferas públicas, privadas, nas igrejas e maçonarias, nas universidades e nas artes, observam-se flutuações, variações e gradações nada desprezíveis em muitas ordens. As questões da política nacional não se encontram imunes às contradições, desventuras e absurdos, a exemplo de um Eduardo Bolsonaro na questão da ação em defesa do tarifaço de Trump. Muitos bolsonaristas evangélicos começam a perceber os problemas do bolsonarismo e de bolsonaristas aloprados como Silas Malafaia.
Nunca esquecer que a força progressiva dos neopentecostais resulta de multifatores, entre os quais: enfraquecimento das igrejas tradicionais, católica e mesmo evangélicas, correlatos de um empoderamento dos neopentecostais da prosperidade, incremento das carências sociais não atendidas pelo Estado. Esse processo social de legitimação importa na força popular do bolsonarismo. Isso por consideração e na medida dos valiosos trabalhos sociais em várias frentes levadas a cabo por igrejas como a Universal do bispo Edur Macedo e outras tantas.
De alguma maneira essas Igrejas substituíram ou completaram a ação integrativa do Estado, por insuficiência, descaso ou abandono em políticas públicas junto à um contingente gigante de comunidades de marginalizados. nos presídios, nas periferias e favelas (o nome é esse mesmo).
Lula foi eleito com forte apoio de Malafaia, representante das igrejas evangélicas. Jamais esquecer. Mudam suas posições eleitorais e podem reorientar suas posições politicas , sim, mas precisam ser vistos e ouvidos, sobretudo em seus sentimentos além das narrativas infectadas por retóricas estratégicas, desinformação e notícias falsas.
As fronteiras entre as variadas expressões e formatos do senso comum não raro são tênues, aproximadas de uma convergência com o que revela o Comum a indivíduos, grupos, classes, independente de etnias, ideologias, escolhas ou condições afetivas: a ideia de viver em sociedade exige ordem e direito ( eficazes por força da Lei e espontaneidade). O particularismo radical de comunidades absolutamente autônomas pode conviver na Lei ou à margem da Lei, menos contra ela. O desrespeito à Lei mpossibilita o exercício da sociabilidade partilhadada na alteridade, sem a qual não há mesmo sociedade num sentido Moderno mais pleno.
É dizer, como agrupamento heterogêneo, evangélicos mais ou menos ligados a Malafaia encontram-se abertos a entender muitas coisas sobre o ambiente político, simplificadas e desvirtuadas no quadro de guerra de torcidas que caracteriza a vida hoje no Brasil. O enfrentamento entre Lula e Bolsonaro, não obstante a contingência da fadiga da democracia e do ascenso de regimes autocraticos não é percebido como perigo em varia frentes. Muitos são os exemplos.
Milhões não entenderam os erros e acertos da Lava jatos e a anulação dos processos contra Lula e lulistas. Milhões não compreendem porque o STF tem extrapolado suas funções intervindo mais do que o necessário na vida dos outros poderes, a ponto de produzir situações desconfortantes que os despotencializam. Milhares de evangélivos e não evangélicos, sejam bolsonaristas ou Lulistas, têm dificuldades de situar Alexandre Moraes como vítima, instrutor e julgador no processo do 8 de Janeiro de 2022. Pessoas conservadoras e mesmo progressistas se perguntam cotidianamenteb sobre as penas aplicadas ao baixo clero da tentativa de golpe e o que parece improvável, o cumprimento efetivo das condenações dos grandes líderes da trama golpista.
O bloco evangélico tem suas fissuras, admitindo espaços para a reinvençâo de outra unidade de interesses e visão de mundo. Ele depende de outra transformação mais difícil. Basicamente, da percepção de que os que também ajudaram a produzir desordens mais amplas, que a todos desorienta e entristecem, tenham a capacidade de mudar comportamentos. Sim, isso tem a ver com outras compreensões e posturas de todo o bloco cultural da política e de todos os seus principais protagonistas. Quais compreensões e posturas?
A direita liberal ingênua, romântica e alienada na esperança de casamento eterno entre liberalismo e mercado e a esquerda dividida, em geral, diante de desconexões entre discursos e ações políticas sólidas para ações comunitárias e a contestação com políticas de cooptação.
No mesmo senso comum dos que se identificam com Silas Malafaia e no seu extremo, com comportamentos autoritários e mesmo totalitários, também estão firmemente presentes sentimentos de injustiça, por desinformação ou não. Há um Comum em interação com os sensos comuns mais particulares. É aí é que a porca torce o rabo. O apoio irrestrito a Moraes, um juiz de tradição autoritária que se alastra, por regra, Brasil afora (são centenas de Moraes…), compreensível por várias razões – afinal o que está em risco é a democracia…, carrega muitas armadilhas… Sinuca de bico, sim, mas ao menos temos que ter isso presente se quisermos impedir a erosão ainda maior no ideário moderno, de sua potência histórica.
Pensar o estorvo Silas Malafaia exige refletir sobre o que nesse impasse resulta de nossos erros históricos e do Abismo em que nos encontramos e ajudamos a cavar, com as mãos, pés, alma. Fora disso estaremos, inconscientemente, a pretexto do autoelogio de perfilarmos o lado bom da história, conduzindo-a a mais desconexões futuras, no caminho de algo tão absurdo como a barbárie em curso.
**O interessante texto jornalístico do jurista Ruy Samuel Espíndola “Silas Malafaia e a afronta à República” (anexo como última nota) é oportuno e provocativo. Tenho algumas dúvidas na perspectiva analítica e sobre as consequências da visão geral do artigo mencionado. Muitos conceitos estão implícitos neste pequeno esboço. O leitor poderá encontrar fundamentos e referências no livro de de Lima de Arruda, Edmundo Jr. O DIREITO NO ABISMO, Fpolis: conceito, 438pp.
*Edmundo Lima de Arruda Jr. é professor aposentado do CCJ/UFSC e ex-presidente da Apufsc-Sindical
Artigo recebido às 10h40 do dia 29 de setembro de 2025 e publicado às 11h40 do dia 29 de setembro de 2025
