Por Alinne Balduino P. Fernandes*
É 14 de outubro de 2025, véspera do dia dos professores. Depois de muitos copos de água ingeridos enquanto leio uma dissertação, vou ao banheiro. Para minha surpresa, ao me direcionar para a pia, vejo que no pote de sabonete líquido há somente um restolho de sabonete, já bastante diluído em água. Vou até a copa, quem sabe consigo lavar as mãos com detergente de louça, mas não. Ao me deparar com essa situação e, pensar que a partir do dia seguinte, 15 de outubro (meu grande dia como profissional!), precisarei trazer meu próprio sabão de casa para manter minhas mãos higienizadas porque os sabonetes não mais serão repostos e a frequência da limpeza do prédio vai ser reduzida pela metade. Por quê? Novos cortes. Por quê? Porque não tem dinheiro. Mas e o dinheiro que tem? O que é feito dele? Não sei.
O sabonete, ou melhor, a sua falta, é um gatilho para algumas memórias não muito distantes.
Há tempos que o CCE anda numa situação um tanto precária. Não consigo precisar a data, o ano… O tempo foi passando e, de revolta, raiva à tristeza, fui me acostumando. No período da raiva, que não foi só minha, mas de muitos, houve mobilizações para uma greve. Nos primeiros semestres de cada ano, que começam sempre muito quentes, tento dar aulas de janelas abertas. Às vezes só a circulação de ar natural é insuficiente, afinal, somos mais de vinte numa sala de aula, é muito calor humano. Aí então ligo o ar-condicionado. Algumas salas têm até duas máquinas. Ao ligar uma delas, sinto-me confusa, parece que fui instantaneamente transportada para a pista de decolagem do aeroporto, como num desenho animado. “A nave vai levantar voo”, e não é música da Céu, é só o ar-condicionado da sala 226 do CCE-A. O ruído é desnorteador. Não consigo prestar atenção no que eu mesma estou tentando dizer aos alunos, que pacientemente me explicam, quase que aos berros para se fazerem entendidos, que aquele ar-condicionado é mesmo muito ruidoso, mas que às vezes ele para de fazer barulho. Um bicho indomável esse. Imprevisível. Aí sugerem que tentemos a outra máquina. Tentamos, mas não liga.
E assim, me dirijo ao laboratório onde ficam as chaves de todas as salas de aula sob os cuidados dos bolsistas, que desempenham uma série de trabalhos: monitoram a entrada e saída das chaves, por vezes nos fornecem apagadores, canetões, controles remotos para os televisores e aparelhos de ar-condicionado. Também fazem outros trabalhos técnicos nos auxiliando com o funcionamento desses estranhos seres ruidosos, que outrora ligavam e desligavam desempenhando suas funções primordiais ao simples toque de um botão. Há tempos que já não são mais assim. Há tempos que é preciso um jeitinho a mais, um know-how só de quem conhece esses bichos: puxa de um jeito, ajeita de outro, liga-desliga-liga e assim vai.
E tudo bem. O período quente parece ser o mais difícil. Finda o mês de maio e a busca pela sala mais fresca cessa. Não preciso mais ser a cachinho-dourados, que experimenta a 226, a 234, a 252, até encontrar a sala menos inadequada para minha turma. Qualquer uma serve. A busca pelo menos pior é a regra – e, certo modo, até um consolo.
Um dia uma luminária caiu na cabeça de uma aluna no CCE-A. Foi triste, muito triste. Houve bastante falatório no CCE entre professores e alunos, acompanhamentos à aluna, que precisou ser imediatamente atendida no HU. Mas passou. Vão dizer que múltiplas tentativas foram feitas, reparos e mais reparos. Disseram também que o prédio precisava ser interditado. Mas seguimos. Sempre em frente e de cabeça erguida, afinal, temos uma importante missão aqui como baluarte do pensamento crítico social, além, é claro, de sempre conduzir pesquisas de ponta, do mais alto nível. Sempre. N’importe quoi, para ser chique.
Mas ontem, véspera do dia dos professores, me senti indigna. Lido (lidamos) com tantas ideias tão elevadas. Em sala de aula, passeio com os alunos pela bruta literatura medieval anglo-saxã, em que nossos personagens bebem mead, uma bebida alcoólica à base de mel e contam grandes histórias sobre caçadas, guerras e lutas contra Grendel e sua mãe, grandes monstros com superpoderes. Num grande giro temporal, seguimos para os contos do grande “pai da literatura inglesa”, Geoffrey Chaucer. E continuamos nossa caminhada com alguma peça shakespeariana, com grandes textos revolucionários e luditas em reação à Revolução Industrial e às repressões e censuras do governo inglês. Nos revoltamos e tentamos agir junto a Wollstonecraft, Blake, Wordsworth… Nos emocionamos com as lutas por uma sociedade mais justa com Olive Schreiner.
Tudo isso acontece no mundo das ideias. Mas ao ir ao banheiro, sou lembrada de uma realidade material tão pequena, indigna e, por que não dizer, humilhante. Meus personagens medievais não lavavam as mãos porque não tinham a mínima consciência da importância desse ato tão simples e fundamental. Simples e fundamental.
Eu queria conseguir promover uma revolução com as ideias tão elevadas com as quais nos deparamos em sala de aula por esse passeio histórico pela literatura. Peças de teatro, romances, contos, poemas e ensaios já foram combustível para grandes revoluções. Mas como? Como fazer isso na segunda década do século XXI quando cada indivíduo parece mais apegado a uma realidade virtual do que às vivências do aqui e agora, no físico, no material? Não quero e não aceito o abandono do campus como o que é. A vivência universitária foi transformadora para mim quando eu era estudante. Na adolescência, antes de eu ingressar na universidade, meu pai me dizia: a universidade é um universo. Esse universo continua aqui, bem aqui. Mas é preciso um movimento que recupere aquilo que é simples e fundamental.
Eu queria fazer uma revolução construtiva e solidária que nos movesse a todos, nem que essa revolução tivesse um nome tão simples e fundamental quanto: a Revolta do Sabonete. Porque lavar as mãos com dignidade é um direito de todos.
Alinne Balduino P. Fernandes é professora do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras (DLLE/UFSC) e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Inglês (PPGI)
Artigo recebido às 16h59 do dia 21 de outubro de 2025 e publicado às 8h22 do dia 22 de outubro de 2025
