A Vaga e o Inciso IV: Crônica de um Preconceito Velado

*Por Samuel da Silva Mattos

O sol do meio-dia castigava o asfalto do estacionamento do supermercado. Uma vaga, convenientemente próxima à entrada, ostentava o símbolo que, para muitos, é apenas um detalhe azul e branco no chão: a figura de um idoso estilizado, frequentemente associado a uma bengala imaginária ou real. Ali, naquele espaço delimitado, materializa-se o que a lei prevê como um direito, não um privilégio, e o que a sociedade, em muitos momentos, insiste em ignorar.

De repente, um carro de luxo, vidros escuros e adesivos de “família feliz” no vidro traseiro, desliza e ocupa a vaga reservada. O motorista desce apressado, jovem, esbanjando saúde e pressa. Carrega sacolas e some porta adentro, sem sequer lançar um olhar para a placa que sinaliza a exclusividade. A cena, corriqueira, repete-se diariamente em shoppings, hospitais e vias públicas, e expõe uma faceta sutil, mas perversa, do preconceito enraizado em nossa cultura: o etarismo.

O etarismo, ou preconceito contra pessoas idosas, manifesta-se de diversas formas, desde piadas inofensivas até a apropriação indébita de direitos garantidos. A vaga de estacionamento, neste cenário, é um microcosmo das relações sociais. A pressa do “jovem” sobrepõe-se à necessidade de acessibilidade do “velhinho de bengala”, reforçando a ideia de que a agilidade e a produtividade têm mais valor do que a dignidade e o bem-estar de quem já viveu mais.

Aí entra em campo a nossa Carta Magna. A Constituição Federal, em seu artigo 3º, inciso IV, estabelece como um dos objetivos fundamentais da República a promoção do bem de todos, “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Esse inciso é um pilar da igualdade, uma barreira moral e jurídica contra atitudes que diminuem ou excluem indivíduos com base em características inerentes à dignidade da pessoa humana, como o envelhecimento. Ou seja, a serenidade de uma vida provecta a que temos direito.

A lei é clara: estacionar sem credencial em vagas destinadas a idosos é infração gravíssima, sujeita a multa e pontos na CNH, e até mesmo remoção do veículo. Mais do que a penalidade financeira, a atitude revela uma falha ética e a negação do princípio constitucional de inclusão.

Recentemente, em um esforço para combater esse tipo de preconceito simbólico, algumas leis municipais e estaduais têm buscado, inclusive, substituir o pictograma (desenho) do idoso curvado com bengala por um símbolo mais neutro, como o “60+” acompanhado da figura de um casal avançando bem coordenado, com autonomia e a passos firmes. A intenção é louvável: desassociar a imagem da velhice da ideia automática de fragilidade extrema e dependência. No entanto, o problema não está no símbolo, mas na mentalidade de quem o ignora.

A vaga reservada não é um favor. É uma medida de inclusão social, garantida por lei e mantida pelo Supremo Tribunal Federal, que visa assegurar o direito de ir e vir com segurança e menor esforço para quem enfrenta limitações naturais da idade.

Da próxima vez que se deparar com uma vaga azul, lembre-se: ali reside um direito fundamental. Desrespeitá-la não é apenas uma “trapaça” conveniente ou uma “rapidinha” sem consequências; é um ato de preconceito que a Constituição Federal veta veementemente. A civilidade começa no respeito aos espaços alheios e na compreensão de que a “bengala” de hoje pode ser a nossa de amanhã. Que o bom senso estacione antes do carro.

*Samuel da Silva Mattos é procurador da Fazenda Nacional aposentado, professor de Direito Constitucional da UFSC e presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB/SC