*Por Alex Degan e Tiago Kramer de Oliveira
“A maioria, após ouvir as discussões sobre os assuntos em questão, seria o melhor juiz.”
Tucídides, VI, 39
A frase acima, extraída da “História da Guerra do Peloponeso”, de Tucídides (460–400 a.e.c.), põe em relevo os limites da dēmokratía, termo que surge no vocabulário grego cercado por controvérsia e violência. Entre os pensadores helenos cujas obras chegaram até nós, predomina uma visão crítica da experiência democrática: ora se reconhecia a ampliação da participação política, ora se denunciavam a instabilidade e os excessos da assembleia. Platão (428–347 a.e.c.) e Xenofonte (430–354 a.e.c.), por exemplo, ficaram profundamente marcados pela condenação de seu mestre Sócrates (469–399 a.e.c.), idealizando sua memória ao mesmo tempo em que culpavam a assembleia por seus abusos.
Aristófanes (447–386 a.e.c.), comediógrafo ático, retratou com precisão o tumulto da política democrática. Em “As Vespas” (422 a.e.c.), satiriza as intrigas e a teatralidade da governança do demos. Seu personagem Filoclêon — literalmente “amigo de Cléon”, político associado à demagogia — é apresentado como alguém viciado em condenar, seduzido pelos tribunais populares e pelas disputas verbais tão irritantes quanto a ferroada de um marimbondo.
Em condições favoráveis, esse embate de opiniões antagônicas era o motor da ética cívica na ágora, pois implicava negociar diferenças e admitir que se “faz política” entre divergentes. Entretanto, mesmo entre defensores da democracia, persistia o temor dos excessos capazes de envenenar o corpo coletivo, frequentemente explorados por demagogos que prometiam o que não podiam cumprir.
A política era, para os atenienses, uma construção coletiva e sempre inacabada — um labor contínuo que reagia às tensões do presente enquanto tentava projetar um devir mais justo. A observação da experiência ateniense é instrutiva justamente porque podemos acompanhar o surgimento, as crises, as inflexões e o esgotamento desse experimento histórico singular. Daí a ênfase dada por Platão ao princípio da igualdade, compreendida não como nivelamento absoluto, mas como antídoto contra o predomínio de qualquer facção. O que ameaçava a pólis era a captura facciosa do poder — pelos aristocratas, pelos pobres, pelos militares, etc. —, mesmo quando detinham maioria numérica, se governassem em causa própria.
Em “Menêxeno” (238 d), Platão sustenta que ninguém é excluído da comunidade política por “fraqueza, pobreza ou orfandade; tampouco é valorizado por atributos contrários, como ocorria em outras cidades. Havia apenas um critério: quem aparentasse sabedoria ou caráter poderia governar”. Idealmente, as lideranças deveriam pautar-se pela prudência e pela busca do bem comum, instaurando uma igualdade orgânica em que nenhuma parte da sociedade dirigisse a cidade isoladamente.
Tucídides, ao analisar a primeira fase da ascendência de Péricles (495–429 a.e.c.), descreveu-o como líder capaz de “afastar os atenienses do ressentimento e desviar seus espíritos dos males do momento” (II, 65), guiando-os mais do que sendo guiado.
Tanto defensores quanto críticos da democracia temiam sua degeneração pela akolasía — a intemperança bestial que conduz ao desregramento moral — e pela demagogia, a manipulação dos debates públicos por meio de argumentos enganosos. Para conter esses riscos, aperfeiçoaram mecanismos como a misthophoría (remuneração aos cidadãos que participavam das atividades políticas) e o ostracismo (banimento temporário de quem atentasse contra a democracia). Acreditavam — ainda que cientes das dificuldades — na força do argumento, do debate e da formação cívica (paideía) como pilares da politeía, a comunidade política. Até Xenofonte, crítico dos democratas, reconhecia a centralidade do convencimento: “tudo quanto alguém, sem recorrer ao convencimento, obriga outro a fazer, promulgado ou não, chama-se violência e não lei” (Memoráveis, 46).
Essa incursão pelos gregos não é mero recurso retórico; acreditamos que ainda podemos aprender com e na História. Apesar de profundamente excludente — pois vetava a participação formal de mulheres, escravizados e estrangeiros —, a democracia ateniense permanece uma experiência histórica de alcance extraordinário, que provoca e orienta reflexões contemporâneas.
Basta lembrar que, da ekklēsía ateniense a uma reunião do Conselho Universitário (CUn), há uma dobra temporal gigantesca, mas também certo espelhamento de práticas e inquietações.
Manipulações, persuasões, sofismas, mentiras e distorções constituem a democracia tanto quanto as críticas feitas a essas condutas. Assim, o que observamos na reunião do CUn, em 25 de novembro de 2025, parece a execução reiterada de um método de gestão que merece exame cuidadoso.
Tudo começa com uma “reivindicação histórica”, geralmente legítima e relevante para a comunidade universitária. A proposta é abraçada por um setor da Reitoria politicamente alinhado ao grupo interessado. Abrem-se reuniões, audiências públicas e grupos de trabalho — mecanismos que, em teoria, permitiriam ampla participação. No entanto, aqui reside um engodo perverso: contribuições divergentes raramente são incorporadas, resultando em um produto final tutelado, embora revestido pela aparência de participação democrática.
Esse padrão se repetiu na discussão da Resolução Normativa sobre novas modalidades de trabalho para os TAEs (teletrabalho e flexibilização) e na implementação do sistema eletrônico de controle social. Houve audiências, consultas e pesquisas de satisfação, mas o conteúdo efetivamente absorvido permaneceu restrito ao script previamente definido.
A composição do grupo de trabalho e da comissão de implementação refletia essa orientação: mínima margem para o contraditório e pouca disposição para integrar visões distintas. Vozes que desafinavam no coro dos contentes eram rapidamente afastadas ou deslegitimadas, produzindo um simulacro de participação em que tudo era escutado de forma diligente, mas decidido por pouquíssimos dirigentes.
Também não houve um debate institucional sério sobre a adesão ou não ao Programa de Gestão e Desempenho (PGD), já adotado pela maioria das universidades federais. Não se analisaram, com rigor acadêmico, as experiências de instituições como UFMG, UnB, Unifesp ou UFRJ. O CUn não foi instado a refletir sobre o PGD, mas pressionado a endossar uma proposta insuficientemente discutida fora do círculo de confiança dos seus defensores. A segurança na solidez do modelo protegido repousava quase exclusivamente na palavra da Prodegesp e da direção do Sintufsc.
A gestão ainda optou por encaminhar tema tão crucial sem dispor de diagnóstico adequado da capacidade laboral da universidade. Continuamos sem instrumentos para dimensionar equipes, planejar alocações, estabelecer critérios de desempenho ou prever necessidades futuras. A Reitoria e a Prodegesp, mesmo provocadas reiteradamente, não produziram estudos básicos que orientassem decisões responsáveis sobre força de trabalho, afastamentos para qualificação ou planejamento institucional. Tal lacuna, no mínimo, compromete qualquer deliberação séria.
A flexibilização da jornada encontrou menos resistência que o teletrabalho, mas, ainda assim, a gestão insistiu em tratar ambos como inseparáveis, acrescentando ao pacote o sistema eletrônico de controle social. A estratégia era clara: condensar três temas distintos em uma única resolução, transformando qualquer crítica a um deles em obstáculo ao conjunto e restringindo o debate.
A Procuradoria, quando consultada, afirmou — e reafirmou — que a decisão competia à Administração Central, não ao CUn. Nas duas notas técnicas emitidas, o Procurador-Chefe fundamentou sua análise no Decreto nº 11.072/2022, igualmente adotado pelo parecerista. No entanto, essa mesma legislação sequer foi mencionada no preâmbulo da Resolução Normativa, revelando um descompasso difícil de compreender.
O projeto-piloto prometia apresentar estudos sobre os impactos das diferentes modalidades de trabalho; o que se entregou, porém, foi um diagnóstico metodologicamente frágil, feito pelo Google Forms. Nada disso impediu que a Reitoria seguisse adiante, desconsiderando, mais uma vez, exigências elementares de institucionalidade republicana.
A reunião do CUn explicitou esse método. Suas prerrogativas foram restringidas e seus mecanismos deliberativos, comprimidos. Ao impedir a votação por destaques, o reitor submeteu todo o Conselho ao escrutínio do ridículo. Criou-se uma aparência de democracia, mas operou-se uma dinâmica corporativa que fragilizou o caráter do órgão.
A articulação estreita entre Sintufsc, Prodegesp e o relator ficou evidente quando o advogado do sindicato — e não a consultoria jurídica da UFSC — passou a assessorar a redação do parecer durante a sessão. Objeções eram recebidas com vaias, interrupções e distorções, o que aniquilou a possibilidade de debate. Em determinado momento, a dirigente máxima da Prodegesp impôs silêncio à plateia e delimitou o que poderia ser aceito, sem resistência daqueles que já haviam declarado rejeitar qualquer alteração. Montou-se, assim, um cenário deliberativo profundamente comprometido.
Ao blindar o debate, a Reitoria optou pelo cálculo político de quem só pensa em reeleição. Seguimos sem diagnóstico sobre setores essenciais, como secretarias de cursos e a Prefeitura Universitária; desconhecemos a relação necessária entre número de estudantes e TAEs; convivemos com sobrecargas e fechamentos de setores. Nada disso pareceu suficiente para frear o ímpeto de aprovar, em nome da aparência democrática, uma mudança estrutural de grande porte.
Do ponto de vista ateniense, o jogo político (tà politiká) não deveria se confundir com o silenciamento das vozes dissonantes nem com a imposição dos interesses de uma fração sobre o todo. A política é um percurso exigente, feito de avanços e retrocessos, e exige uma verdadeira politikē téchnē, uma técnica orientada pela formação cívica.
Sócrates, em sua maiêutica, buscava desestabilizar certezas para revelar suas fragilidades. Em nosso processo recente, marcado por akolasía e demagogia, faltou o princípio básico da isēgoría, o direito igual de falar. Qualquer questionamento que buscasse instaurar reflexão foi destituído de legitimidade por um grupo excessivamente seguro de suas maiorias.
Voltaire (1694–1778), ao refletir sobre a condenação de Sócrates pela assembleia ateniense, observou: “Sabemos que ele teve, ainda assim, 220 votos em seu favor. O tribunal dos quinhentos continha, portanto, 220 filósofos, e esse é um número muito grande: duvido que se conseguisse encontrar tantos reunidos em qualquer outra parte” (Tratado sobre a tolerância, VII).
Na teatrocracia que hoje emporcalha o CUn, nem mesmo essa ironia voltairiana encontra espaço.
* Alex Degan é docente de História da Ásia do HST/CFH.
Tiago Kramer de Oliveira é docente de História da América Portuguesa do HST/CFH.
Artigo recebido às 8h44 do dia 4 de dezembro de 2025 e publicado às 11h51 do mesmo dia
