“O Brasil não precisa mais do corporativismo”

O estilo é excêntrico. Gosta de usar chapéu e costumava ser visto em automóvel multicolorido pelas ruas de Florença, na Itália, onde é professor emérito do European University Institute. O americano Philippe Schmitter, de 74 anos, é considerado um dos maiores cientistas políticos do mundo. Em 2009, ganhou o prêmio equivalente ao Nobel da área, o Johan Skytte Prize, da universidade sueca de Uppsala.

Tem opiniões firmes, taxativas. Mas não consegue encontrar resposta para o que chama de “mistério”. O Brasil não se encaixa em suas expectativas. Na semana passada, Schmitter voltou ao país, onde esteve em 1967 para pesquisar sua tese de doutorado. À época, entrevistou líderes sindicais e analisou o corporativismo brasileiro, que persiste até hoje, para sua decepção e espanto.

Schmitter alega que não tem respostas pois há tempos não estuda o Brasil. Mesmo assim é incisivo. Afirma que o país precisa de mais pluralismo e critica instituições corporativistas – como Sesi, Sesc, o imposto sindical – que seriam resquícios “fascistas” da era Vargas. O quadro partidário e a legislação eleitoral seriam “caóticos”, embora, admita, tenha informações de que o sistema político brasileiro funcione bem.

A capacidade intelectual de Schmitter está à altura de ideias polêmicas, entre as quais métodos para aperfeiçoar a democracia como loteria e o direito de voto para todos os cidadãos, incluindo os bebês.
Em São Paulo, Schmitter participou de conferência organizada pelas associações internacional e brasileira de ciência política – IPSA e ABCP – e pelo European Consortium for Political Research. Bastante requisitado, antes de conceder esta entrevista proferiu duas palestras, na FGV e no Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec), onde tentava contatar um velho conhecido, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Valor: Por que o corporativismo seria tão ruim para o Brasil?

Philippe Schmitter: Eu não diria ruim, não é essa a implicação. Mas a expectativa comum é, ou foi até recentemente – na verdade, estive envolvido na mudança dessa visão – que quanto mais os países se desenvolvem, maior é o crescimento na divisão do trabalho, maior é a especialização, e há mais formas complexas de produção etc. Desenvolvimento representava isso, o que remonta a Durkheim, a Adam Smith. A estrutura socioeconômica, ao se tornar mais complexa, produziria um padrão pluralista de grupos de interesse. E os grupos vistos originalmente como os mais unificados, por exemplo, a classe trabalhadora, começariam progressivamente a se fragmentar em diferentes setores, profissões, técnicas. Essa expectativa se baseou na experiência dos Estados Unidos, Canadá e outros países.

Valor: Por que o Brasil deveria seguir o mesmo caminho?

Schmitter: O Brasil tem duas características a mais que o favoreceriam a se tornar ainda mais pluralista: uma variedade de grupos étnicos e religiosos e uma variedade de subeconomias regionais, traduzida na expressão Belíndia, uma mistura de Bélgica e Índia. Ou seja, tudo indicava que o Brasil era o país em desenvolvimento perfeito do Terceiro Mundo para um sistema de interesses pluralistas. Mas continuou e está praticamente sozinho neste sistema corporativista.

Valor: E por que continuou?

Schmitter: É obviamente fácil de entender porque [Getúlio] Vargas no Estado Novo impôs esse sistema. Era muito comum nos anos 1930. Ele copiou de [Benito] Mussolini [ditador da Itália entre 1922 a 1943]. A primeira questão difícil é: por que isso sobreviveu nos anos 40, 50 e persistiu até o golpe militar de 1964? Eu consigo entender porque a ditadura militar gostaria de continuar esse sistema. Na verdade, os militares o ampliaram para as áreas rurais, porque o sistema de Getúlio era apenas para as áreas urbanas. Não havia sindicatos rurais. Foram os militares que os criaram, pois queriam controlá-los.

Valor: Em sua origem, o corporativismo tem essa característica: a de controlar o conflito social.

Schmitter: Neutralizar e controlar a formação de associações de classe etc, pelo Estado, normalmente por um ministério como o do Trabalho. No caso do Brasil, esse foi o instrumento. O que me intriga é que, agora, mais uma vez, houve uma redemocratização do Brasil, que é ainda mais profunda e significativa do que a de depois de 1945, e a pergunta é: por que o Brasil não mudou do corporativismo para o pluralismo? Por que sobreviveu todo esse aparato, expresso, por exemplo pelo imposto sindical, mas também por outros tipos de instituições como Sesi, Sesc etc. Mais peculiar ainda é o fato de o antigo Lula ter sido um oponente, o qual acho, não tenho certeza, entrevistei, pois conversei com vários líderes sindicais em São Paulo, quando estive aqui em 1967. [Lula tornou-se dirigente sindical, pela primeira vez, em 1969, como suplente, e em 1972, como titular].

Valor: E por que o Brasil não mudou?

Schmitter: Não tenho uma resposta, porque não estou estudando mais o país. Mas se você pegar o México, que tinha um sistema muito parecido, iniciado em 1936, a democratização representou a desintegração do modelo corporativista.

Valor: Quais são os principais sinais de pluralismo no México?

Schmitter: As associações se tornaram voluntárias, você não precisa contribuir para elas, como se faz no imposto sindical. Você escolhe ser representado ou não e, em muitos casos, você tem mais de uma instituição representativa, há uma oficial e outra não oficial, ou várias. No Brasil, os capitalistas podem escolher a Fiesp ou sua associação não corporativista. Há uma forma de pluralismo para a burguesia. Mas não há para os trabalhadores.

Valor: Em países europeus, como os nórdicos, o corporativismo, denominado societal, também prevalece, mas não é do tipo estatal, como no Brasil. Qual é a diferença básica entre os dois? Por que no Brasil o modelo não é benéfico?

Schmitter: Lá, a diferença básica é que a estrutura de representação de interesses ainda é monopolista e hierárquica, como no Brasil, mas é voluntária. É produzida pela escolha livre dos trabalhadores e capitalistas. O sistema é formalmente voluntário, mas gera incentivos que tornam a associação quase compulsória. É muito difícil para um trabalhador sueco, por exemplo, não ser um membro de um sindicato. Porque os sindicatos oferecem uma série de serviços, de empréstimo, habitação, cobertura para o desempregado. A filiação é voluntária, mas está tão enraizada em políticas públicas que você não pode ficar fora. Já o corporativismo getulista, ou de Mussolini, é autoritário.

Valor: No entanto, há uma tese corrente de que o modelo corporativista brasileiro teria ajudado o país a enfrentar a grave crise econômica mundial de 2008. O que o senhor pensa sobre esse argumento?

Schmitter: Não tenho a menor ideia. Para responder a essa questão eu teria que saber que tipo de comportamento se deu. A resposta mais comum é a existência de pactos sociais, ou seja, acordos explícitos, negociados. Mas tipicamente, em sistemas de corporativismo estatal, não há coisas assim, o Estado impõe. Por exemplo: o sistema brasileiro de relações industriais é inteiramente dependente do salário mínimo. É uma decisão do Estado, ratificada pelo Parlamento. Não é independentemente negociado entre capital e trabalho.

Valor: Para o senhor, a persistência do corporativismo brasileiro é bizarra. O quadro partidário e o sistema eleitoral seriam caóticos. No entanto, a economia se mostrou forte e o Brasil é considerado uma democracia consolidada.

Schmitter: O Brasil é uma real democracia funcional. Mas seu componente mais caótico não são os grupos de interesse ou os movimentos sociais. São os partidos políticos. Vocês têm um sistema partidário e uma legislação eleitoral muito incomuns. Pessoas me dizem que o quadro partidário brasileiro não é tão caótico quanto parece, mas acho que vocês têm 17 partidos no Parlamento. Isso é absolutamente maluco. Apesar disso, e escrevi um artigo sobre o assunto, a qualidade da democracia, não só no Brasil, mas em outros lugares da América Latina, é melhor do que as pessoas pensam. Há obviamente exceções – a Bolívia é uma bagunça. E ninguém sensato esperaria que o Brasil se comporte como a Suécia.

Valor: O corporativismo, além de controlar e neutralizar o conflito social, foi visto como um instrumento para acelerar a industrialização e a modernização de países em desenvolvimento. Isso explicaria sua persistência no Brasil?

Schmitter: Essa é uma teoria muito associada a um romeno, Mihail Manoilesco, que foi muito, muito lido aqui no Brasil e que eu utilizei em meus trabalhos. Isso faria sentido nos anos 1930 e, talvez, nos anos 50, como uma desculpa. Talvez até tenha tido o seu efeito. Mas é irrelevante no momento atual. O Brasil hoje não precisa desse fóssil corporativista. O Brasil tem corporativismo porque foi herdado de um período anterior e é difícil se livrar dele. É uma situação de path-dependence. Por que o Brasil é tão dependente dessa trajetória? Não houve essa dependência na Espanha, em Portugal, no México ou qualquer outro lugar.

Valor: Como eles se livraram?

Schmitter: Muito facilmente. Tão logo você tem democracia e liberdade de associação, partidos políticos em competição, especialmente concorrendo pelo voto da classe trabalhadora, os socialistas, os comunistas, como na Espanha e em Portugal, você tem sindicatos socialistas e sindicatos comunistas. As instituições corporativistas prévias começam a se desintegrar, tornam-se não oficiais, não impostas, e passam a competir uma com as outras.

Valor: Por outro lado, o pluralismo é uma característica do sistema partidário brasileiro, considerado muito competitivo.

Schmitter: Que nada… É por isso que vocês têm 17 partidos. Talvez a resposta [para a persistência do corporativismo] seja que vocês tenham muitos partidos. O tipo de competição que fragmenta e destrói o corporativismo – que existe entre os capitalistas, mas especialmente entre os trabalhadores – não ocorre no Brasil. Porque vocês têm muitos fragmentos. Eu imaginaria que o PT, especialmente com a história de Lula, poderia ter sido o partido que competisse com outros partidos trabalhistas, um PTdoB ou qualquer sigla semelhante, a ponto de a competição levar à fragmentação do sistema, minando o corporativismo e abrindo espaço para o pluralismo nas organizações. Isso não aconteceu. Simples argumentos diriam que é por causa da cultura política brasileira. Isso é besteira. A explicação mais simples é que as organizações dos capitalistas e dos trabalhadores reforçam a trajetória dependente porque é bom para elas, querem continuar com o imposto sindical.

Valor: Até que ponto o pluralismo pode ser considerado um bom modelo para os tempos de prosperidade e o corporativismo, para as épocas de crise, como a de 2008?

Schmitter: Há uma hipótese tradicional de que quando você tem um “boom”, que não é gerado pelo pluralismo como tal, o pluralismo permite uma espécie de flexibilidade para tomar vantagem desse momento. E o corporativismo, porque introduz regulações, restrições nos negócios, inibe. É uma hipótese que faz sentido.

Valor: O que o senhor está pesquisando atualmente?

Schmitter: Estou trabalhando em algo completamente revolucionário. Estou desenvolvendo um sistema de medida no qual posso pegar diferentes democracias e lhe dizer que tipo de capitalismo elas têm.

Valor: A democracia brasileira seria um ponto fora da curva?

Schmitter: Eu não estaria tão seguro… Mas nessa pesquisa estou estudando apenas os países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), as nações ricas.

Valor: O que há de revolucionário?

Schmitter: Há uma hipótese importante na literatura de variedades de capitalismo, que se baseia na noção de complementariedade institucional. Todo sistema capitalista pode se distinguir de outro sistema por um número de características: papel do Estado, governança corporativa, descentralização, papel das bolsas de valores, sistema de crédito etc. Eu meço oito variáveis no meu trabalho. A hipótese principal é que o que faz uma economia capitalista funcionar bem não é ter um tipo de instituição, mas ter instituições complementares. E a ideia é que há dois conjuntos de instituições complementares, ambas as quais funcionam bem, mas de forma diferente e que beneficiam as pessoas diferentemente. O primeiro é o capitalismo liberal, expresso pelo Consenso de Washington e que tem os Estados Unidos, Reino Unido, Nova Zelândia, Austrália, Canadá como exemplos. O outro é o capitalismo social e cujos maiores representantes são Suécia, Dinamarca, Áustria, Finlândia, que são países corporativistas. Os dois sistemas têm instituições muito diferentes, mas que se complementam. Logo, o importante não é ter um sistema corporativista ou pluralista, mas se ele está inserido num conjunto de instituições. A segunda implicação dessa hipótese é que nos países de sistemas mistos as instituições não são complementares e, logo, seu desempenho será pior.

Valor: E isso se confirma?


Schmitter: Não. Essa é a hipótese que eu estou provando que não é verdade. Há capitalismos liberais e capitalismos sociais. Entre eles, pela minha medição, está provavelmente o país mais confuso, com a mais estranha mistura de instituições, que é o Japão. A predição, logo, é que o sistema japonês terá o pior desempenho.

Valor: Mas o Japão funciona bem, tem uma grande economia.

Schmitter: Não agora. Porque o Japão é o sistema capitalista com o pior desempenho após a crise. Ele costumava ter um bom desempenho, nos anos 1980 e 90. Agora, o capitalismo japonês está uma bagunça.

Valor: Por que isso aconteceu, as instituições japonesas mudaram desde 1980?

Schmitter: Esse é o ponto, não sei. Não estou medindo ao longo do tempo. Gostaria de fazê-lo, mas não tenho os recursos para tal. Mas veja a Coreia do Sul. Tem um sistema misto e está indo muito bem. A Alemanha também é um exemplo de sistema que não é liberal nem social. Mas tem instituições muito consistentes. A Alemanha e a Holanda saem da minha análise como sistemas híbridos e têm um desempenho muito bom. Ou seja, você não precisa ser liberal ou social. O pior é quando suas instituições são muito diversas, não complementares. É o caso da França e da Itália. A conclusão é que o capitalismo não é uma coisa boa ou ruim que depende apenas de uma instituição, mas de um padrão de instituições.