Na forma como a universidade está estruturada vemos que a greve é uma decisão coletiva que afeta de forma diferenciada os vários departamentos que a compõem. Também é diferenciada a percepção do ônus que a greve traz à formação acadêmica dos estudantes que dependerá da forma com que os professores de cada departamento em geral concebem: (I) o nível de dificuldade, e (II) a importância do que é ensinado.
Em relação ao ponto (I), é razoável admitir que cursos contemplando conteúdos tradicionalmente mais complexos e difíceis tornam-se inviáveis de ser ministrados com as paralizações decorrente de greves. Isto ocorre porque conceitos exigindo um nível mais elevado de compreensão e articulados de forma dedutiva e sequencial só conseguem ser ministrados de forma satisfatória através de um estudo intenso e regular, algo incompatível com uma rotina de paralização que inviabiliza a própria forma de se aprender esses conceitos. Assim, do ponto de vista da formação acadêmica, segue-se que o prejuízo da greve é maior nos cursos que tratam com conceitos que exigem um nível mais elevado de compreensão por parte dos alunos.
Consideremos agora o ponto (II). É difícil imaginar que um professor perceba seu ofício de forma tão burocrática e sem o devido alcance a ponto de considerar – como lemos num panfleto do sindicato ANDES – “a greve como um transtorno temporário”, como se fosse possível tratar o prejuízo na formação dos alunos que estão sem aula como algo temporário. Deve haver alguma explicação para este pensamento. Com efeito, há pessoas que insistem em redefinir parâmetros acadêmicos que desde a época de Galileu estão assentados na publicação em revistas científicas, substituindo-os pelo projeto antiacademicista da universidade popular que é avesso a todo conhecimento que esteja desconectado da práxis marxista. Por esta razão, desvirtuam a própria universidade referindo como “produtivistas” (um termo que usam de forma pejorativa) todos aqueles que pensam a universidade de forma contrária a deles. Ora, se o modelo academicista prima pela livre produção do conhecimento e apresenta seus frutos na formação acadêmica dos estudantes temos, por oposição, que no modelo antiacademicista-popularista a livre formação acadêmica dos alunos não faz a menor diferença, o que explica a máxima andesiana do “transtorno temporário” causado pelas greves.
Concluímos então que a importância dada aos pontos (I), (II) não é uniformemente compartilhada pelos vários departamentos da universidade, o que por sua vez parece indicar que há departamentos onde a natureza do conteúdo ensinado se apresenta como algo trivial que não é demasiadamente comprometido pelos efeitos de uma greve, ou como algo de menor importância diante dos objetivos supremos de uma greve. Mas, o que fazer então em departamentos onde os pontos (I) e (II) são altamente estimados? Ora, se a percepção da finalidade do trabalho é diferenciada, então da mesma forma deve ser dada a possibilidade de deliberações diferenciadas por departamentos, que viria do exercício de uma “autonomia departamental” a ser devidamente regulada. Assim, numa situação de greve quem decidiria pela suspensão dos cursos oferecidos por um departamento seria o seu colegiado. Um certo professor que aderisse a greve teria respeitado seu direito a greve, mas o departamento guardaria o direito de substituí-lo em cursos considerados essenciais (por exemplo, aqueles cursos de natureza mais particular que são fundamentos para outros cursos da grade curricular, ou que servem como qualificação para admissão a pós-graduação).
Tal autonomia departamental corrigiria a decisão do CUn de suspender o início dos cursos de pós-graduação, decisão equivocada e que manifesta opiniões variadas quanto a necessidade e importância da pós-graduação. Com efeito, foi uma decisão equivocada porque nossos ilustres conselheiros sabem (ou deveriam saber) que os programas de pós-graduação se submetem as avaliações da CAPES, sendo por isso essencial que as teses sejam defendidas nos prazos estabelecidos. Ciente disso, aquele que delibera pela suspensão do início do curso de pós-graduação assim o faz consciente de que isso tem um impacto negativo na formação dos estudantes podendo inviabilizar os prazos de finalização das teses. Logo, a decisão de suspender o início dos cursos de pós-graduação não deixa de revelar uma visão estreita da importância da pós-graduação na universidade. É preocupante que esta tenha sido a decisão do CUn, o órgão colegiado máximo da universidade, e igualmente preocupante foi saber que a questão foi decidida pelo voto da magnífica reitora.
Alguns poderão questionar se há realmente uma diferença significativa na adesão dos departamentos a greve que justifique tal autonomia departamental. As estatísticas na UFRJ indicam que sim. Lá a porcentagem de docentes parados por centro é a seguinte: 90% nas Ciências Humanas, 60% nas Ciências Biológicas, e 20% nas demais áreas. Não há razão aparente para pensar que a proporção seja muito diferente na UFSC.
Em sua essência, tal discrepância pode ter relação com a importância que os professores de um e outro departamento dão aos pontos (i) e (ii) mencionados anteriormente e que, na sua raiz, remetem a diferentes concepções de universidade refletidas no antagonismo dos modelos academicistas e antiacademicista-popularista. Os 90% de adesão entre os professores das ciências humanas na UFRJ não tem explicação estatística plausível, logo, sugere uma investigação mais cuidadosa, algo que Jules Monnerot analisa em seu livro “Demarxiser L”Université”! Diante de porcentagens tão desconcertantes vemos que não há a menor possibilidade de entendimento entre professores que manifestam concepções tão distintas sobre a função do docente. Acredito que o recurso da descentralização e autonomia departamental, como propus neste texto, possa ser usado para melhor servir nossos estudantes.
Não desejo convencer ninguém de que as greves na universidade contribuem para precarizar a universidade naquilo que é a sua razão de existir: a formação acadêmica dos estudantes. Isto é evidente. Assim, é lícito (mas não necessariamente justo) deflagrar uma greve por questões salariais ou de estruturação de carreira desde que se assuma que se está fazendo isso a custas da precarização da própria universidade. Insistir no contrário é um sintoma agudo de ignorância ou de desonestidade intelectual. A desonestidade intelectual do discurso nos será cobrada no dia em que o povo que nos paga o salário se perguntar: “Quem são esses soberbos que se dizem professores universitários, mas se mostram incapazes de fazer com que tenhamos uma universidade reconhecida como uma das 50 melhores do mundo?”, ou ainda “Quem entre eles é uma autoridade na sua área de conhecimento que se qualificaria como professor do MIT, Princeton, …”? É daí que nasce o discurso pejorativo do “produtivismo” como tentativa desonesta de fugir de padrões universais de excelência para assim não ter que admitir o próprio fracasso e a condição medíocre. Se pelo menos estivéssemos compromissados com o mínimo que esperam de nós – ministrar nossos cursos -teríamos algo a dizer em nossa defesa. Nem isso,…, e viva a universidade pública do Brasil e suas intermináveis greves exibidas como troféus por sindicalistas profissionais que jamais deveriam estar na academia.
Marcelo Carvalho
Professor do Departamento de Matemática