*Por Fábio Lopes
Cada departamento de ensino da UFSC tem mais ou menos a mesma configuração: uma parcela dos professores dá boas aulas, atualiza-se e mantém produção intelectual minimamente sólida, ao passo que outra parte leva a vida na flauta. Entre técnicos e estudantes, o quadro é análogo: uma fatia deles dedica-se às suas obrigações com afinco e criatividade, enquanto a outra não está nem aí para a hora do Brasil.
Trabalho na universidade desde 1994 e posso atestar que sempre foi assim. O que mudou de uns anos para cá foi o fato de que a instituição – que outrora se limitava a tolerar os acomodados e irresponsáveis – hoje está estruturada para protegê-los e justificá-los. Todo um conjunto de regras e ideologias foi concebido para transformar seus vícios em virtudes. Explico.
Houve um tempo em que ser barnabé na UFSC era perfeitamente possível, desde que o sujeito fosse discreto, silencioso. O combinado era que essas pessoas ficassem na delas, andassem rente às paredes e principalmente não atrapalhassem a rotina de quem se dispunha a pegar firme no batente. Mas já não é mais assim.
A moda agora é sociologizar o baixo desempenho, encontrar algum motivo politicamente relevante para explicar a própria opção preferencial pelo dolce far niente. Se o cara faz pouco ou nada, é porque os salários estão ruins, falta financiamento à pesquisa, as condições de trabalho não são adequadas, o racismo, a misoginia ou algum outro tipo de discriminação o impedem de exercer bem suas funções.
A boa e velha malandragem virou ato de resistência ao capitalismo. A ignorância e a incompetência atualmente batem no peito e se orgulham de sua ausência de obra. O vazio deixado pela falta de produção própria é preenchido por intermináveis pregações sobre as injustiças sociais.
A ideia de que se é vítima do sistema ocupa de tal modo o centro da cena que falar em agência e responsabilidade individual é anátema. Quem cultiva ou invoca esses valores estaria se rendendo a ideologias liberais, que só serviriam para ocultar os próprios privilégios e o status quo. Uma série de conceitos – academicismo, produtivismo, etc. – foi inventada para estigmatizar e inculpar os que acham que o esforço pessoal deve sempre tentar triunfar sobre a tirania das circunstâncias.
A crítica à meritocracia chegou ao ponto de fazer com que o mérito tenha vergonha de seus feitos e seja visto como sinônimo de violência e elitismo. Por suposto, nem tudo nesse estado de coisas pode ser colocado na conta da atual gestão da UFSC. Mas a sua contribuição para que chafurdemos no lodaçal em que estamos metidos não é desprezível. E é disso que pretendo tratar nas linhas finais deste artigo.
O reitorado ora em curso nasceu da parceria entre, por um lado, um burocrata sem nenhum projeto a não ser o da própria permanência no poder e, por outro, uma educadora cuja única pauta é o combate às formas de discriminação às minorias. O resultado dessa combinação foi terrivelmente deletério.
Quando bandeiras legítimas como a inclusão e a luta antirracista se hipertrofiam e não se articulam com a promoção de outros valores, elas se esterilizam, se esvaziam, se reduzem a demagogia e autocomplacência. Não por acaso, o próprio reitor lança mão do vitimismo o tempo todo, limitando-se a repetir que a universidade está no buraco em que está exclusivamente por causa do orçamento insuficiente, o que é uma mentira deslavada.
A instituição, claro, certamente deve tentar criar meios de se democratizar ainda mais. Mas ao mesmo tempo não pode deixar de se perguntar para que isso serve. Ora, foi justamente essa pergunta crucial que a Reitoria recalcou. A democratização da universidade não pode ser um fim em si mesmo: ela tem que estar a serviço de valores – a verdade, ciência, a eficiência, etc. – que são a própria razão de ser do ensino superior. Do contrário, acontece o que aconteceu: o discurso em nome da empatia, do acolhimento, do combate ao sistema e da eliminação de injustiças se converte em uma gosma que qualquer um pode usar a qualquer momento para obturar a cárie do próprio fracasso, da própria miséria intelectual, da própria preguiça.
Se não trabalho tanto quanto devia, é porque, como TAE, sou assediado pela arrogância dos professores; se não produzo os artigos que deveria, é porque não me rendo ao produtivismo neoliberal; se não cobro resultados de meus alunos, é porque sou sensível às dificuldades que eles enfrentam em suas vidas; se não estudo o suficiente, é porque, como no samba famoso, “tenho minha casa pra cuidar”.
A UFSC, suspeito, nunca deixará de ser uma instituição cindida entre gente responsável e aquela fauna apaixonada pelos pequenos privilégios do serviço público federal. Mas ela seguramente pode ser muito melhor do que é.
Entre os vagabundos incorrigíveis e os CDFs, há uma zona cinzenta, um grupo intermediário que se move ao sabor do vento. Se as circunstâncias favorecem a improdutividade, eles tendem a dançar conforme a música; se os padrões de trabalho são mais rígidos, eles se adaptam razoavelmente a isso.
No fim das contas, é essa zona cinzenta que decide se a universidade será mais interessante ou continuará vagando no deserto em que se encontra. E é sobre ela que uma Reitoria de fato comprometida com os valores universitários pode atuar.
A UFSC está hoje em uma encruzilhada. Nas eleições do início do ano que vem, podemos reeleger uma gestão que não só não cobra nada de ninguém com também fornece um rol interminável de desculpas para que as pessoas transformem a própria falta de energia em superioridade moral. Alternativamente, podemos apostar em uma chapa que desafie a instituição a superar os limites hoje em voga.
A tentação, claro, é deixar tudo como está. O problema é que deixar tudo como está é, na verdade, permitir que as coisas continuem piorando. Afinal, está claro que o velho modelo de financiamento das universidades colapsou para sempre, e as instituições que não se modernizarem e se renovarem se condenarão a ocupar uma posição cada vez mais subalterna – isto é, cada vez mais empobrecida – no sistema federal.
Com cada vez menos recursos, a UFSC terá cada vez menos chance de sustentar a própria improdutividade. No longo prazo, como na célebre fórmula de Keynes, estaremos todos mortos. Se a ideia é esperar passivamente que um meteoro ou o aquecimento global ponha fim à vida na Terra antes que toquemos o fundo do poço, estamos no caminho certo.
*Fábio Lopes é professor do CCE/UFSC
Artigo recebido às 12h39 do dia 10 de novembro 2025 e publicado às 14h25 do dia 10 de novembro 2025
