Como destruir uma ilha em vinte lições

Existem pessoas que constroem cidades, outros preferem destruí-las. Como em breve haverá um novo plano diretor, vai aqui minha sugestão para facilitar a destruição, mesmo que já tenha iniciado o processo.

1) Habite uma ilha, mas de costas para o mar. Afinal, você ficará cego de tanto vê-lo, que continuar olhando para ele será um suplício. Depois de alguns anos, “se faça de moderno” e transforme toda a orla urbana – inclusive a das lagoas – em estacionamentos para automóveis, e vá tomar café nos postos de gasolina.

2) Esqueça de forma solene a cultura produzida pelos moradores, a começar por destruir todo seu patrimônio material e imaterial, colocando abaixo todo o casario histórico (para quê, né, manter casa velha?) e construa prédios funcionais, e “modernos”. Deixe que intelectuais, arquitetos, urbanistas e especialistas falem o que quiserem, eles costumam não entender nada disso.

3) Como essa gente faz muita porcaria, construa um imenso merdário bem na entrada da cidade, para que turistas e a própria população sinta todos os dias o cheiro daquilo que sabem fazer muito bem.

4) Depois encha a cidade de estátuas extemporâneas e esquisitas, como aquela em homenagem à Polícia Militar, carinhosamente apelidada de “No meu não”, e, ao lado do merdário, finque bandeiras enormes.

5) Gaste uma fortuna na construção de um complexo – mas complexo mesmo – de terminais urbanos que fazem a viagem ficar mais lenta do que antes da construção deles. Não dê ouvidos àqueles malas que insistem em achar que investir em transporte marítimo, só porque se habita uma ilha, dará resultado.

6) Aterre todas as orlas, pelo mesmo motivo já citado. Afinal, é muito mar que tem por aí. Precisamos mesmo é de terra e espaços para os automóveis, razão essencial de nossas vidas.

7) Depois de aterrar orlas e baías, convide um dos urbanistas mais importantes do mundo, como Burle Marx, para que faça um projeto de urbanização do aterro. Quando estiver tudo pronto, destrua tudo e coloque ônibus, muitos ônibus, para fazer “não” funcionar aquele complexo citado acima. Para acabar de vez, construa um Centro de Eventos cuja arquitetura, além de tapar a pouca vista do mar, é bem parecida com a do merdário citado antes.

8) Asfalte todas as ruas do centro histórico. Afinal, o turismo depende apenas de bundas, sol e areia, fazendo, ainda, ampliar a velocidade dos carros, aumentando a poluição sonora e os acidentes. Ninguém vai à Europa para ver sua cultura e sua história, ou seus museus. Essa gente gosta mesmo é de ver carros, muitos carros.

As outras 12 lições continuam no próximo sábado*. Convido o leitor a colaborar. Escreva para o e-mail acima sugerindo outras lições. Juntos, criaremos esse pequeno manual metafórico da destruição urbana.

Continuo com os outros 12 tópicos restantes*. Desta vez com a sugestão dos leitores, aos quais agradeço e não os nomino por não haver espaço. Faço apenas uma referência a Paulo Stodieck, que avisa com justiça, sobre o nome da estátua à PM, na Beira-Mar, apelidada pelo jornalista Beto Stodieck. Segundo Paulo, ao invés de “no meu não”, deve ser dizer “ni min não”.

9) Reconstrua apenas os pilares do mítico Miramar, pinte de cor de rosa e deixe inacabado. Afinal, aqui também tem construção que já é ruína.

10) Construa centros de compras (e os chame colonizadamente de shopping, pois somos ingleses ao que parece) bem em cima dos mangues. Ninguém precisa daquele ecossistema cheio de garças, carangueijos e que de nada serve na hora de comprar roupinhas de 200 reais, vindas do Bom Retiro, em São Paulo, por apenas 25.

11) Construa casas penduradas nas encostas das lagoas e dos morros próximos ao mar e desmate tudo em volta, para que tenha mais visão da natureza, antes que outro construa a sua também e desmate e tire a sua visão privilegiada.

12) Desmate, aterre e negocie com a Câmara de Vereadores a ocupação de áreas de preservação permanente por empreendimentos que privatizam a paisagem e os acessos à praia.

13) Evite o incentivo aos esportes adequados ao clima e geografia, tais como o vôo livre, a pesca, a vela, etc, e permita a ocupação de áreas de abastecimento de lençol freático por empreendimentos imobiliários voltados a esportes praticados há anos na Ilha e adorados pelos seus habitantes, como o golfe, por exemplo.

14) Como a Ilha dos Aterros já tem parques demais, doe os parques municipais de preservação para a iniciativa privada explorar os recursos naturais a serem protegidos e as áreas de terra para especulação imobiliária, assim como o Parque Sapiens e o Parque do Rio Vermelho.

15) Ignore os argumentos de técnicos e ambientalistas que só querem impedir o progresso da cidade e utilize as estruturas de instituições públicas para persegui-los até que abram mão das bandeiras preservacionistas e se mudem de cidade e Estado.

16) Construa novos e luxuosos prédios, cada vez mais perto do mar, sem saber pra onde vai o esgoto, venda pra milionários de qualquer lugar do mundo, e depois coloque a culpa nos que vêm de fora pela ocupação desenfreada.

17) Deteste quem pensa um pouco no futuro e que – mesmo ciente de que um dia vai morrer – acha que seus filhos e netos merecem uma ilha um pouco melhor.

18) Seja moderno e diga de boca cheia Ecochato. É muito chique ser contra os ecochatos. Prefira ser ecoburro, que é também muito moderninho.

19) Asfalte ruas que não têm nem nome ainda, nem esgoto. Afinal, o que não aparece não dá voto.

20) Vá embora e não lute contra.

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O artigo foi publicado em duas partes no caderno Variedades do Diário Catarinense, onde o escritor assina coluna aos sábados. A primeira parte foi publicada em 28/10 e a segunda 04/11.