Sobre química, cotas e dívida social

Sem dúvidas, pelos padrões éticos atuais, a escravatura é uma monstruosidade.

Mas nem sempre foi considerada assim. Abraão teve muitos servos. A mulher de Abraão, Sarai, quando já em idade imprópria para procriar, cedeu a ele sua serva, Hagar, para que com ela ele tivesse muitos filhos. Teve um, Ismael, pai da nação árabe.

Vê-se que a escravidão é coisa antiga e, naquele passado, vista com naturalidade.

Os gregos, que inventaram a democracia (dêmos + kratía, povo + poder), praticavam a escravidão. E não só estrangeiros eram escravizados. Por exemplo, os efebos que serviam aos heróis olímpicos dos quatorze aos dezoito anos. Estes não tinham escolha. Eram entregues aos heróis para servi-los (as mulheres eram consideradas sujas, impuras, e como tais imprestáveis para satisfazer um atleta!), não raro pelos pais. Não era isto também uma forma de escravidão?

Os romanos fizeram escravos a rodo. Entre eles, alguns gregos.

A escravidão existia naturalmente entre os africanos, antes mesmo de eles serem negociados, como mercadoria ordinária, para terras americanas. Eram feitos escravos por outros africanos e vendidos como tal.

Na realidade, os brancos não faziam escravos: compravam-nos. Compravam negros presos e escravizados por outros negros. 

Há um conto de Prosper Mérimée (1803-1870), muito a propósito dessa triste prática. Conta as aventuras e desventuras de um respeitável chefe africano, Tamango, cujo negócio era precisamente caçar, prender, escravizar africanos e vendê-los, como mercadoria qualquer, a mercadores europeus e americanos. A escravidão na África ainda persiste de forma explícita, ou mesmo disfarçada. Ou não será escravidão o seqüestro de meninos inocentes para lutarem em guerras fratricidas, estúpidas e sem sentido, a não ser os interesses da algum crápula ditatorial? Quantos desses inocentes morreram em Angola por causa do  bandido Jonas Sawimbe?

Vista sob o contexto histórico, a tal “cobrança” da divida social da escravatura é absurda, tão difusa é sua responsabilidade. Fica muito difícil cobrar alguma coisa de alguém. Parece que ao fim e ao cabo, somos todos credores e devedores. 

Esta questão guarda semelhança com aquela outra, da invasão e ocupação de terras de outros. Levada ao pé da letra, a justiça se fará apenas quando os anglos e os saxões deixarem o território da velha ilha britânica, os descendentes de portugueses voltarem a Portugal, os de espanhóis à Espanha, os de ingleses, irlandeses, italianos, poloneses e outros abandonarem a América e o Canadá e voltarem para os paises de seus antepassados.

O que eu quero dizer com isso é que remexer a História para, no afã de fazer justiça, reaver o status quo ante pode ser estupidez, supina burrice ou pura demagogia.

Procurar cobrança por martírios passados, quando todos temos ficha suja no cartório da História, idem.

Quando essa cobrança é feita em moeda que avilta o conceito histórico e universal de universidade (com a entrada nela pela porta do fundo), então atingimos o paroxismo do estapafúrdio, do irresponsável e da demagogia boçal.

Já faz alguns anos, fazia-se no departamento de engenharia mecânica o chamado projeto institucional de pesquisas, submetido sempre à FINEP. Os professores fazíamos projetos individuais, ou em grupos, que eram juntados para formar o tal institucional. Naqueles projetos eram previstos pagamentos aos pesquisadores e seus associados. Como sempre, havia aqueles que, despreparados, não apresentavam projetos, não faziam pesquisas e ficavam sem pagamentos.

Isto gerava amuos e inconformidades pois, diziam aqueles que não pesquisavam, nós outros fazíamos pesquisas porque eles nos proviam tempo para tal, já que tinham carga de aula maior. Era um raciocínio torto, tão absurdo que não vale a pena comentá-lo.

Pois não é que apareceu, em uma reunião do departamento, um estudo (com tabela e tudo) feito por uma comissão (não me perguntem quem a criou e nomeou os membros) transformando hora dada de aula em pesquisa realizada (e, conseqüentemente, remunerável?).

Isto é histórico, minha gente! 

Na época pensei em recomendar os membros daquela comissão ao prêmio Nóbel de química, pois nada mais pode explicar tão incrível transformação. 

Mas o que esta história tem a ver com o problema das cotas e a tal dívida social com os negros e outras etnias?

Acho tem, em comum, a química mesmo.

Em um caso se quis transformar hora de aula em pesquisa.

No caso das cotas, querem transformar uma suposta e difusa dívida social em competência intelectual para a entrada na universidade.

Sem dúvidas a analogia, pela absurda transformação química que demanda, é evidente.

E ambos os casos igualmente nocivos.