A refundação empresarial da Apufsc?

Está em curso entre nós, uma tentativa de “refundar a Apufsc” a partir de um “novo sindicalismo universitário”. Os defensores da proposta insistem na necessidade de um regimento orientado pela máxima de “todo poder ao Conselho de Representantes” que, alegam, deixou de funcionar há mais de 20 anos. Creio que ninguém deveria se opor à reforma de um regimento destinado a aumentar a representatividade de nosso sindicato, dar transparência a suas decisões e lograr mais força reivindicatória. Mas este ambicioso e necessário objetivo pode mesmo ser conquistado com a reforma regimental? Afinal, quais foram as causas que determinaram a indiscutível debilidade do sindicalismo universitário?

Mandeville ou Adam Smith? – A “teoria” do professor como um “ser acadêmico individualista”, defendida neste Boletim por PC Philippi é compreensível. Antes que uma “teoria” útil para a análise das transformações universitárias, trata-se de um discurso destinado a corromper por completo a natureza republicana da universidade brasileira. Os professores não eram menos individualistas na década de oitenta, quando o atual sindicalismo exibia vitalidade na defesa dos salários e contribuía – com a crítica – na confecção de um modelo universitário que finalmente se impôs. Ademais, o “homem egoísta” não é, precisamente, uma “tese” nova: divulga-se, entre nós, com pelo menos três séculos de atraso. Em 1703, na conhecida Fábula das abelhas, Bernard de Mandeville indicou que a colméia enriquecia não pelo exercício das virtudes, mas precisamente pela prática dos vícios: proclamou então o conhecido lema “vícios privados, virtudes públicas”. A dialética de Mandeville nos será útil para identificar as opções em disputa.

De uma parte estão aqueles que consideram que alguns professores enfrentam editais, lutam junto à indústria para trazer recursos aos laboratórios, generosamente denominados “empreendedores”. Estes – que segundo PC Philippi “transformam chumbo em ouro” – alegam corretamente que o Estado nega as condições para fazer universidade e concluem que não há remédio senão buscar fora dos muros universitários os recursos para tal. Em função desta prática, estes professores logram complementação salarial – na maioria dos casos de maneira ilegal. Eles, em conseqüência, não prezam pela vida pública, ou seja, desprezam o sindicato e alguns, inclusive, julgam que se trata de um intruso em uma instituição que, por sua natureza, é distinta da fábrica. Mas eles se defendem dos críticos afirmando que, além da complementação salarial que obtém (o vício privado), conquistam recursos para laboratórios, equipamentos, bolsas para estudantes, etc., que de outra forma tornaria a pesquisa impossível (as virtudes públicas). Astutamente, proclamam que esse caminho é possível para todos, tal como os capitalistas do século XIX tentavam persuadir os operários alegando que com disciplina e dedicação, poderiam também virar patrões. 

Em oposição, os defensores da luta coletiva indicam que este individualismo debilita o sindicato e termina por corromper a natureza republicana da universidade pública brasileira. Alegam que, se não fosse a luta coletiva – especialmente as greves –, os salários seriam ainda mais baixos e, muito provavelmente, a maioria dos professores já teria abandonado a universidade pública, especialmente aqueles que precisam dela para exercer entre nós os “vícios privados”. Concluem, acertadamente, que a luta reivindicatória é decisiva para manter a universidade públicad+ mas esqueceram que a luta salarial já não nos unifica como no passado. Precisamente em função desta diferenciação, a linha economicista que marca a atuação sindical – não importa se via greves ou luta judicial nos tribunais, como no caso recente da URP – é incapaz, desde o sindicato, de derrotar a política oficial do governo destinada à transformação empresarial da universidade brasileira.

A adequação da realidade ao conceito: da natureza egoísta do professor ao professor-empresário – Os “empreendedores” – ou o professor-empresário – perceberam que os ventos sopram favoravelmente, em especial depois que Lula chegou ao governo e não mudou o projeto universitário dominante. Ao contrário, a aprovação da Lei de Inovação – que recentemente contou inclusive com a versão catarinense aprovada na Assembléia Legislativa – indicou o caminho da transformação empresarial da universidade brasileira, especialmente no que diz respeito ao financiamento da pesquisa. É por isso que o professor-empresário se lançou à luta pelo poder político no interior da universidade brasileira. Os “empreendedores” disputam, desde então, as eleições para reitor, abandonam qualquer vestígio de protagonismo político na Andifes e necessitam, para completar o trabalho, mudar também o sindicalismo. Não se trata de suprimir o sindicato, mas de “adequá-lo à nova realidade”. Ora, neste contexto, invocar a essência individualista do professor não cumpre outra função senão a legitimação post festum, do professor-empresário. Uma perversa e útil adequação hegeliana da realidade ao conceito. 

Esta transformação empresarial da universidade foi a principal responsável pela caducidade do sindicalismo combativo dos anos oitenta, mas certamente não foi a única causa. Duas outras mudanças ajudaram. A primeira delas foi o padrão do trabalho universitário vigente na universidade brasileira que originou a derrota acadêmica do intelectual público. Venceu, portanto, o trabalho tecnocrático e empresarial, pois a dimensão republicana do intelectual foi declarada ilegítima no campus universitário. Basta observar os editais das agências de financiamento (do Finep ao PET, passando por CNPq, Capes, ministérios, etc.) para constatar a realidade. No essencial, o financiamento orienta a pesquisa para o rumo empresarial e a liberdade acadêmica fica plenamente garantida aos marginais, aos “sem recursos”. No pomposo jargão empresarial que prospera entre nós, a liberdade acadêmica fica garantida aos “sem projetos”. A mudança na legislação ampliou as possibilidades pecuniárias, razão pela qual o próprio professor, um familiar seu ou um “sócio”, criam as empresas necessárias para “tocar o projeto”, via fundações de apoio, em função das amarras da legislação imposta pela falta de autonomia. 

Na exata medida em que estas mudanças operadas desde Brasília tiravam o chão do velho sindicalismo combativo, o professor-empresário observou sorridente que a prática sindical do Andes se deteriorava rapidamente. Esta foi a segunda fonte da falta de legitimidade do sindicalismo atual. Assembléias esvaziadas, baixa qualidade política dos “dirigentes”, carreirismo sindical e discurso descolado das necessidades dos professores se ampliaram. Um sindicato com esta práxis não seria, em princípio, detestável para o professor-empresário. Exceto se começa a atrapalhar o “negócio” e não se limita à sua insignificância. Ora, a última greve nacional expressou como nenhuma outra a situação, particularmente na UFSC: um inaceitável movimento decidido e realizado por uma minoria de professores incomodou a paz necessária para tocar “os projetos que possuem prazos e não podem parar a pesquisa”. Ficava cada dia mais evidente que a surrada consigna do “trabalhador da educação”, através da qual o velho sindicalismo pretendia uma identidade de classe entre o professor universitário e o povão, representava não somente uma ameaça, mas, sobretudo, uma afronta à nova condição de “classe” exibida pelas ilhas de prosperidade no interior da universidade brasileira.

Neste contexto, podemos compreender o elogio ao Proifes. Além de uma versão pálida e pouco eficaz do sindicalismo de resultado – ao contrário da propaganda, os reajustes seguem sendo tão ruins quando negociados quanto o foram na época em que eram arrancados pela greve –, o Proifes redefine o sindicato em favor desta “nova universidade” que apenas uma minoria experimenta. Uma universidade empresarial, limitada à apologia da inovação sem patentes que, finalmente, é o que nos caracteriza. O Proifes elimina o estorvo do sindicato combativo, centrado na luta salarial via greves nacionais enquanto legitima a universidade empresarial, anti-nacional e anti-republicana. Por isso, o Proifes condena as “ideologias” e o suposto “radicalismo” que tomou conta do Andes e se apresenta como um sindicato mais vinculado “aos interesses dos professores”. O Proifes defende o isolamento social dos professores e por esta razão critica a proximidade com organizações sindicais mais amplas, seja a comportada CUT ou o “radical” e incipiente Conlutas. Por esta mesma razão, os defensores mais radicais do novo regimento afirmam estar “devolvendo o sindicato aos professores”. A descoberta da pólvora, sem dúvida!

E uma nova universidade? Nem pensar! – Na outra ponta, o sindicalista combativo sofre um desarme intelectual completo, pois alega em sua “defesa” que os proponentes do novo regimento os tratam como se ele “não tivesse alunos, trabalho de pesquisa, não orientasse, em suma, como se não tivessem todos os mesmos compromissos e rotina na Universidade”. Ele declara solenemente que também pode exibir seu Lattes! Enfim, o sindicalista combativo é alguém que não percebe que o padrão do trabalho universitário que admira é, além da própria derrota acadêmica do trabalho intelectual, o túmulo que cavou sobre seus próprios pés. Indignado, insiste que o “individualismo é a negação do espírito acadêmico, universitário” sem perceber que este ethos está em extinção e a luta que realiza, ainda quando radical na defesa do salário (economicismo), não faz mais do que fortalecer esta redefinição empresarial do “espírito acadêmico e universitário” que supunha intocável. Ele se aferra à defesa abstrata do “público” após duas décadas de reforma intelectual organizada pela modernização capitalista (no jargão sindical, “neoliberalismo”) que legitimou o “privado” em termos sociais e no interior da universidade.

O sindicalista combativo se limita às lições do filósofo moral Adam Smith, que espetou os discípulos atuais de Mandeville ainda no século XVIII, indicando que a máxima dos “vícios privados, virtudes públicas” representava uma falácia, e que a tentativa de representar toda “paixão como plenamente viciosa, em qualquer grau ou qualquer sentido” era incorreta. Em contraposição, Smith afirmou que uma “mão invisível” devolveria a felicidade ao público. Ao contrário do resgate capitalista de Smith, que preconiza o interesse individual, o velho escocês afirmou a primazia do interesse público! Nosso sindicalista combativo não percebe que a velha divisão do trabalho universitário que julgava eterna – na qual uma burocracia tocava a universidade, os pesquisadores pesquisavam e os sindicalistas faziam a luta política – ruiu por completo com a aparição do professor-empresário. Treinado na arte de abraçar apenas as lutas que nos unificam – daí sua obstinação pela linha economicista e o correspondente apreço pela greve – ele aparece como um romântico, no sentido pejorativo da expressão política. Ele não aceita a rebelião contra o sindicalismo que pratica e não consegue compreender as razões pelas quais alguns protestam agora contra as mesmas greves que, no passado, sempre decidíamos em assembléias minoritárias, embora fossem realizadas de bom grado por todos. Ele talvez não entenda que este mundo ruiu após 1994 e seu clamor pela defesa do “interesse público” já não basta. 

Todo poder ao Conselho de Representantes? – A proposta do novo regimento outorga mais poder ao CR. Quem poderia se opor? Há, contudo, uma cláusula de garantia que une o sindicalista combativo e os defensores do “novo sindicalismo”. O artigo 25, parágrafo 2, reza: “o quorum de instalação e deliberação estabelecido para as reuniões do CR é de ¼ (um quarto) mais um do número total de departamentos e escolas da UFSC.” Ou seja, um quorum modesto, se considerarmos aproximadamente 60 os membros efetivos, ainda que mais representativo do que as reuniões da diretoria. São compreensíveis as razões de tanta cautela e não deveria existir tanto barulho por quase nada. O modelo universitário atual organiza o processo de trabalho de tal forma que, salvo exceções, a eleição de um membro ao CR representa um esforço muito próximo do heroísmo. Não tenho notícia de uma disputa sequer para tão importante cargod+ na maioria dos casos o “delegado” é empurrado para tal condição. O fantasma que pretende exorcizar – a falta de interesse pela vida pública e a correspondente participação sindical – é castrada pelo empreendedorismo que inexoravelmente avança. A maioria dos professores não tem acesso a editais polpudos, não possui empresas dispostas a cortejá-los, padece de condições de trabalho pouco dignas, mas atua como se o convite para o seleto clube de empreendedores estivesse a ponto de ocorrer. Por isso, o cuidado excessivo com o Currículo Lattes, que deve estar sempre pronto em caso de uma oportunidade feliz. 

O novo sindicalismo está disposto a controlar o “emprendedorismo”? O controle sobre o professor-empresário possui duas conhecidas vias: o gabinete do reitor e o Ministério Público, que legalmente vela pelas fundações de apoio. Ora, quando os dirigentes das universidades brasileiras nascem do empreendedorismo, o gabinete do reitor desaparece como mecanismo de controle, pois se transforma, antes de tudo, em ponto de estímulo para tal política. A crise nacional envolvendo sucessivos escândalos nas fundações de apoio indica claramente o fato. E o Ministério Público? Atua como pode, com recursos limitados, lentamente e com parcos, ainda que importantes resultados. O sindicato poderia ou deveria fazer algo a respeito? Estaria disposto a lutar por outro modelo de universidade na prática, superando a atuação exclusivamente economicista? PC Philippi guarda silêncio sobre isso.