Nova Apufsc e o velho reacionarismo

Massacre? Não houve massacre. Morreu pouca gente. É… Até que morreram poucos, para aquilo que eles fizeram. Obstruir uma estrada é coisa grave… Vocês, no Sul, acham que essa história teve muita importância aqui em Marabá, não é? Pois não causou impacto nenhum. Nossa forma de pensar aqui é outra. 

Carivaldo Ribeiro, presidente do Sindicato dos Ruralistas de Marabá, em entrevista à revista Caros Amigos, edição especial sobre o massacre de Eldorado dos Carajás

No contexto da criação artificial de algo denominado Nova Apufsc, justifico este texto em resposta às manifestações explícitas de reacionarismo político ocorridas no interior de nossa Universidade, iniciadas na lista de e-mails do Sindicato, passando pela Assembléia Geral e, finalmente, sendo despejadas neste Boletim (número 643, de 30 de junho). Trata-se, no último caso, de artigo que afronta a Missão da UFSC e desrespeita a seriedade de dezenas de seus pesquisadores, condenando movimentos sociais legítimos que lutam pelo direito à terra de milhares de famílias miseráveis em todo país. No referido artigo, dentre outros ataques, o Sr. José J. de Espíndola atribui ao MST o caráter de organização terrorista. Vejamos aqui a questão agrária e este movimento social de outra forma.

A luta pela terra e a eclosão de movimentos sociais no campo não são recentes, tampouco exclusivas de nossa sociedade. Em geral, enfrentar grupos poderosos, em todos os tempos e lugares, não se configura como mera aventura ou esporte, mas sim como imperativo de sobrevivência. No caso do Brasil, as lutas históricas mais recentes do movimento camponês tiveram sua última fase no período 1950 a 1964. Nesta fase, se desenvolveram as Ligas Camponesas, a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil e o Movimento dos Agricultores Sem Terra do Rio Grande do Sul, todos eles massacrados pela ditadura militar, com seus líderes sendo assassinados, presos ou exilados. 

Apesar da forte repressão, vários aspectos contribuíram para reorganização da luta pela terra, destacadamente entre 1978-1982. O primeiro refere-se às condições objetivas de vida no campo, pois, com apoio governamental ao desenvolvimento do capitalismo rural, apoiado pelo capital estrangeiro, iniciou-se espécie de modernização conservadora –  a chamada Revolução Verde –, que em termos políticos e econômicos significou: i) fortalecimento de crédito rural subsidiado para as grandes propriedadesd+ ii) entrega de terras públicas apenas para grandes empresasd+ iii) estímulo à mecanização no campo e iv) implantação de agroindústrias para venda de insumos industriais.

Como resultado imediato desse processo, em torno de 1985, a produção agropecuária brasileira foi elevada substancialmente. No entanto, esse aumento não foi suficiente para deter a saída dos trabalhadores para as cidades, sendo acompanhado de notável empobrecimento de grande contingente da população. 

Se em muitas nações desenvolvidas a reforma agrária já ocorreu há tempos, como é o caso do Japão e Estados Unidos, no Brasil ela é lei não cumprida pelos sucessivos governos. Por aqui, inclusive, há latifúndios mais extensos do que muitos países europeus, cujos proprietários são empresas de capital transnacional, grandes banqueiros e industriais, com muitos deles ocupando ou tendo ascensão junto ao Legislativo, Executivo e Judiciário. Ou seja, estão diretamente ligados ao poder em todas as esferas, confundindo-se dessa forma com o próprio Estado ou com o seu controle. Isto explica, em parte, por que eles podem se dar ao luxo de manter a terra improdutiva para especulação ou simplesmente investir na criação de gado e em monocultura para exportação, o que representa, para além do capital absurdamente elevado que acumulam, grave devastação de áreas que deveriam ser preservadasd+ perpetuação da fome no próprio país e manutenção dos elevados níveis de desemprego, dentre outros problemas.

Isso posto, pode-se perceber o quanto a questão agrária é complexa, não sendo possível tratá-la de forma tão simplista e irresponsável, atribuindo a movimentos sociais, herdeiros forçados de disputas seculares e universais, a pecha de terroristas. Até porque na batalha improvável entre a foice e a enxada contra tanques, helicópteros e fuzis, as baixas têm sido, por ampla maioria, apenas de um dos lados. Ao menos é isto que apontam os dados oficiais, inclusive no caso de repercussão internacional conhecido como “Massacre de Eldorado dos Carajás”:

– Foi um massacre típico, com uso de força desnecessária seguida de execução sumáriad+ os que fugiram eram recapturados para serem liquidados. Não nos interessa se um sem-terra atirou a primeira pedra ou não, porque ninguém morreu ali de pedrada. Os sem-terra não morreram em confronto, morreram subjugados e imobilizados nas mãos da Polícia Militar. (Laudo pericial de Nelson Massini)

Em tempos de guerra orquestrada pelos EUA contra o terrorismo, caracterizar o referido movimento social (justamente ele que luta pela soberania nacional) da mesma forma, é deveras preocupante. Há diferenças significativas do entendimento sobre invasões e as ocupações adotadas pelo MST, diferenças essas já reconhecidas por intelectuais, políticos, artistas e mesmo pelos críticos mais severos do Movimento. Adotar o termo ocupação é politizar a ação, dando caráter histórico à conquista. Em outros termos, ocupar é questionar o direito inquebrantável de propriedade privada, e também uma maneira de forçar, na pauta política, a discussão sobre o sentido constitucional de “função social da terra”.

O que isto tudo tem a ver com a UFSC? Conforme aprendi com pesquisadores mais experientes, embora a atividade científica não sobreviva à neutralidade, o acadêmico deve, sobretudo, superar o amor ou ódio aos movimentos sociais, buscando, incessantemente, compreendê-los de forma profunda. No caso da missão da UFSC, isto não é mera possibilidade, mas sim dever acadêmico. 

Nessa direção, é bastante compreensível, perante a complexidade e o conflito de interesses com os latifundiários, encontrarmos problemas nos movimentos sociais no desenrolar de suas lutas. Fossem eles coletivos perfeitos, decerto não precisariam da ajuda da universidade pública. Contudo, é preciso ser honesto e reconhecer que em meio a tanta exposição do MST, e considerando também os milhares de militantes – homens, mulheres e crianças que lhe dão vida em condições subumanas em assentamentos e acampamentos por todo o país –, os casos que fogem ao controle da organização têm sido, de fato, bastante reduzidos. 

Apesar disso, o mais comum é serem apresentados entusiasticamente seus defeitos na grande mídia, escondendo seus inúmeros avanços em termos de organização coletiva. Organização que possibilita conquistas nos campos da agricultura, educação, saúde, moradia e relações de gênero, bem como no campo das relações institucionais, sendo generosos com a ignorância e limites de adversários que os atacam impiedosamente.

Para encerrar, fica aqui a homenagem aos pesquisadores desta Universidade que, contra todas as tentativas de intimidação, desqualificação e criminalização, têm se esforçado em cumprir a “Missão da UFSC”. Buscam assim “produzir, sistematizar e socializar o saber filosófico, científico, artístico e tecnológico, ampliando e aprofundando a formação do ser humano para o exercício profissional, a reflexão crítica, solidariedade nacional e internacional, na perspectiva da construção de uma sociedade justa e democrática e na defesa da qualidade de vida”. 

Para cumprimentá-los pessoalmente, basta pesquisar na BU, sendo possível lá encontrar referências a grupos de pesquisa e os autores de dezenas de projetos de extensão, cursos de formação, TCCs, dissertações, teses, livros. Pode-se, enfim, conferir toda produção séria realizada em praticamente todos os Centros e dedicada a compreender, criticar e contribuir com o avanço dos movimentos sociais deste país.

Por fim, uma coisa me intriga: como poderá o presidente de nossa entidade, cuja trajetória política pessoal inclui a fundação do MST em Santa Catarina, manter o caráter militante de um movimento social próprio ao sindicalismo combativo, quando entre os mais fiéis apoiadores da chamada Nova Apufsc encontram-se posições declaradamente reacionárias? Deixemos que, nesta encruzilhada, o tempo e a prática sirvam como critérios de verdade!