Castigo e crime em terras catarinenses

A catástrofe que assolou Santa Catarina, deixando comovente rastro de destruição, torna difícil compreender a iniciativa do Governador do Estado de remeter ao legislativo projeto de lei flagrantemente inconstitucional, solapando a legislação de proteção ambiental. Mais enigmática foi a aprovação, rápida e sem registros de contrariedade, pelo legislativo catarinense. 

O episódio lembra uma situação descrita classicamente por Fiódor Dostoiévski. Parece que aos parlamentares e centenas de agricultores que se aglomeravam no plenário da Assembléia, o castigo prévio da catástrofe ambiental lhes facultava e legitimava o crime. Narra Dostoiévski: 

“Esse crime ínfimo não seria atenuado por milhares de boas ações? Por uma vida – milhares de vidas salvas do apodrecimento e da desagregação. Uma morte e cem vidas em troca – ora, isso é uma questão de aritmética. Aliás, o que pesa na balança comum a vida dessa velhota tísica, tola e má? Não mais que a vida de um piolho, de uma barata, e nem isso ela vale porque a velhota é nociva. Ela apoquenta a vida dos outros”. 

Na vida real ouvimos a exaustão o argumento utilitarista de que manter preservado aquele mínimo exigido pela legislação, significa penalizar milhares de agricultores que deixarão de produzir nessas áreas e de auferir lucros. Eliminar as ditas APPs, nesse cenário, é um crime ínfimo, já que, dizem os deputados, as tais APPs apoquentam a vida de muita gente. Mas, não sejamos ingênuos, a velhota tísica, tola e má, e que precisa ser sacrificada em nome do bem comum, é a nossa jovem Constituição Federal, e com ela a democracia. 

Apesar da cantilena de serem diferentes do resto do país, catarinenses, deputados ou não, são tão comuns quanto os demais “brasilianos”. E aí, nos ensina Garrett Hardin, reside a tragédia. Num país tão grande e com tanta floresta, não é a mordidinha dada pelos catarinenses que vai fazer o planeta explodir, pensam os mais comuns.

Os aguerridos defensores da proposta do Governo de SC comportam-se como adeptos da ética utilitarista de Jeremy Bentham, onde “cada indivíduo só pensa em si mesmo, preocupa-se mais com suas vantagens do que com as dos outros”. A “abstenção”, adotada por alguns, insere-se na mesma lógica, porém com uma dosagem adicional de hipocrisia. Mas, estamos sendo injustos com Bentham. 

Bentham com seu radical utilitarismo ocupou-se de questões éticas, posicionando-se em favor da eliminação da miséria e da diminuição do sofrimento humano através da criação de mecanismos para realizar uma certa justiça social. Com notável criticidade se opôs aos “revolucionários franceses”, panfletários do ilusionismo que afirmavam os direitos universais do homem. Bentham, séculos antes de Hardin já nos alertava que o indivíduo somente possui direitos na medida em que conduz suas ações para o bem da sociedade como um todo, e a proclamação dos direitos humanos, tal como se encontra nos revolucionários franceses, seria demasiada e levaria ao egoísmo. Este, segundo Bentham, já é muito forte na natureza humana. Assim, o que deve realmente ser procurado é a reconciliação entre o indivíduo e a sociedade. 

Para agricultores egoístas e parlamentares inconseqüentes sequer cabe a menção de utilitaristas, seria um equívoco imperdoável. A insensatez dos parlamentares, por outro lado, os remete para a marginalidade. 

A Constituição Federal (CF) de 1988 estabelece que a Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (Art. 37). 

Antes da votação, farta documentação atestava a ilegalidade da proposta, inclusive manifestações do Ministério Públicod+ muitos deputados justificaram o voto por beneficiarem pessoas que não observam as leis vigentes. O posicionamento consciente de afronta as leis e a Constituição é imoral. A aprovação do PL não resguarda qualquer eficiência, pois a Assembléia Legislativa não tem competência para revogar dispositivos constitucionais, ou leis federais. 

A CF sabiamente confere garantia ao direito de propriedade, não negligenciado o atendimento da sua função social. Tudo devidamente previsto no artigo 5º da Carta Magna. Já no artigo 186 há a previsão de que a função social é cumprida quando a propriedade rural atende aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequadod+ II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiented+ III – observância das disposições que regulam as relações de trabalhod+ IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. 

Considerando a manifesta ilegalidade do Código Ambiental de Santa Catarina, aquele proprietário que por ele pautar suas ações estará sujeito a perder sua propriedade. Isto porque, não cumprindo os dispositivos da legislação federal, estará utilizando de forma inadequada os recursos naturais e comprometendo a preservação ambiental. Logo, sua propriedade não cumprirá sua função social, cabendo a União promover a desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, como prevê a CF no seu artigo 184. Não consta que deputados catarinenses tenham alertado os incautos agricultores das eventuais conseqüências de se pautar pela ilegalidade. 

A classe política atual tem demonstrado extremo desprezo em relação ao destino da nação, preocupados mais em se servir da coisa pública. 

A insanidade do Governador e dos parlamentares catarinenses é ainda mais evidenciada quando lembramos que Santa Catarina é um Estado originalmente coberto pela Mata Atlântica, aplicando-se no caso também os dispositivos da lei federal 11.428/2006. Isso porque a CF definiu a Mata Atlântica como patrimônio nacional, determinando expressamente que a sua utilização far-se-á, na forma da lei, assegurando a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais (Art. 225, § 4º). 

O mesmo artigo 225 da CF incumbiu ao poder público definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção. 

O Governador de Santa Catarina não apenas se desvencilhou desta obrigação ao propor o Código Ambiental, como também usurpou essa competência dos 293 prefeitos municipais, que agora não mais terão a autonomia conferida pela CF para criar áreas protegidas nos seus municípios. 

Friedrich Nietzsche, para quem toda ação é egoísta e a compaixão perversa, também nos dizia que a falta de consciência é uma forma de insanidade. Assim, não causa estranheza que os deputados catarinenses estabeleçam que o Presidente da República não mais disponha da prerrogativa constitucional para criar áreas protegidas no Estado. Sepultada no legislativo a República, surge em SC a “Reprivada”, onde sem qualquer pudor se esbanja o dinheiro do contribuinte, obviamente sem compaixão. 

Vale registrar que a CF estabelece que qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular para anular ato lesivo ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. O ato perpetrado pelo governador e deputados catarinenses é uma ameaça à democracia, porém não necessariamente a fragiliza. 

É lastimável e deveras negativo para a democracia o flagelo da autodesmoralização da classe política. E para corrigir isso não há judiciário que dê conta, restando ao eleitor fazer justiça não reelegendo políticos incapazes de cumprir a missão que lhes foi delegada. 

Num quadro político tão anacrônico, aplicar a Teoria dos Castigos e das Recompensas, que Bentham nos legou nos idos de 1811, pode ser demonstração de que a modernidade enfim chega à política catarinense.