Cuba – 50 anos de Revolução

Parte I

Um líder que marcou a segunda metade do século XX, não apenas nas Américas, mas também em todo o mundod+ proclamou o caráter socialista de sua Revolução (1961) tão somente a 90 milhas do império mais poderoso do planeta e comandou com maestria uma grande e heroica resistênciad+ enfrentou os Estados Unidos, como também a União Soviética, durante a Crise dos Foguetes (1962) e, soberanamente, não permitiu que Washington inspecionasse o território cubano para certificar-se da retirada dos mísseisd+ varreu do país a contrarrevolução da Serra do Escambray (1965) e passou incólume por mais de seiscentas tentativas de assassinatod+ desempenhou um papel proeminente contra o colonialismo na África e foi um dos grandes responsáveis pelo aceleramento do fim do apartheid de Pretória, como também da independência da Namíbia (1988)d+ comandou a travessia do período especial em Cuba, crise originada pelo fim da União Soviética, quando muitos davam por terminado o socialismo na Ilha “satélite” (1991)d+ levantou grandes temas para discussão em toda a América Latina – como a dívida externa e a globalização neoliberal – dando à batalha das ideias uma dimensão universal na politização das relações internacionais. Estes foram alguns dos acontecimentos nos quais esteve envolvido diretamente Fidel Castro Ruz. Gostemos ou não dele, é preciso conhecê-lo.

O livro Fidel Castro – Biografia a dos voces, de Ignácio Ramonet (Buenos Aires: Debate, 2007, 760 páginas, edição ampliada e revisada, com fotos), é o resultado de cem horas de entrevista com o principal líder da Revolução Cubana, que comenta com muita propriedade os acontecimentos que marcaram grande parte do século XX.

Fidel defende a concepção de revolução não como evento, mas sim como o resultado de um processo de longa duração. Perguntado por Ramonet quando começou a Revolução, respondeu que em 10 de outubro de 1868, início da Guerra dos Dez Anos contra o colonialismo espanhol. Preso e interrogado logo após o assalto ao quartel Moncada, respondeu que o autor intelectual daquela façanha tinha sido José Martí, revolucionário cubano morto em 1895, em luta pela independência de Cuba. Portanto, não fora o Movimento 26 de Julho que criara as condições para desencadear o processo revolucionário, mas sim as circunstâncias históricas que marcaram a vida dos cubanos por mais de cem anos. Entre elas, o desenvolvimento de um capitalismo dependente, o mais avançado do Caribe e um dos mais progressistas da América Latina, caracterizado pelo impacto secular do colonialismo espanhol, seguido da exploração do imperialismo estadunidense.

Este capitalismo dependente criou, durante a segunda metade do século XIX, efeitos modeladores e desenhou a composição econômico-social cubana que vai aparecer no século XX, cabendo destacar três deles: 1) as condições da passagem de uma sociedade escravista para a capitalistad+ 2) a influência deformadora do mercado mundial, que produziu uma economia extrovertida e monoprodutorad+ e 3) a entrada do imperialismo estadunidense, que reforçou as deformações geradas pelos fatores acima mencionados[1].

Fidel se considerava um marxista utópico em sua juventude. Entendia que a dialética da luta de classes movimentava os interesses da sociedade e que somente um processo revolucionário poderia reverter a exploração dos ricos sobre os pobres. Diz ele: “era já – em 10 de março de 1952, dia do golpe de Estado de Batista – [eu] um convicto marxista-leninista, há alguns anos” (p. 111). As ideias de Marx e Lênin foram a matéria-prima essencial da Revolução, sem esquecer a influência de Miguel de Cervantes e de Victor Hugo sobre sua formação. Embora o caráter inicial da Revolução fosse democrático-popular, agrário, nacionalista e anti-imperialista, ela apontava para o socialismo a médio prazo. No entanto, as constantes agressões dos Estados Unidos, seguidas de uma tentativa frustrada de invasão armada da Ilha, obrigaram seus líderes a definir rapidamente o novo rumo. Os cubanos tinham bem presentes a certeza de que a defesa de seu novo governo, se atacado, seria feita somente por eles, embora valorassem como de suma importância o apoio da União Soviética.

A Universidade de Havana contribuiu na formação da consciência marxista de Fidel Castro. Tanto que ingressou nela, simplesmente, com um espírito de rebeldia e algumas ideias de justiça, tornando-se, posteriormente, um revolucionário e incorporando valores pelos quais lutaria toda a vida. “E digo que se nesta universidade me tornei revolucionário foi porque fiz contato com alguns livros” (p. 100), entre eles, os de Martí, Marx e Lênin. Por esta mesma casa de estudos já havia passado, na década de 1920, Julio Antonio Mella, fundador do Partido Comunista e líder do Movimento Estudantil. Foi um revolucionário e um intelectual que marcou as lutas das organizações operárias e estudantis contra o imperialismo estadunidense e seu lacaio cubano, o ditador Gerardo Machado, cuja polícia secreta acabou assassinando-o no México.

Cuba e suas relações com os Estados Unidos – A independência formal de Cuba, em 1898, transformou-a em uma autêntica neocolônia dos Estados Unidos por conta da Emenda Platt (1901) e do Tratado de Reciprocidade Comercial (1903). Se a Emenda dá a Washington, entre outras prerrogativas, o direito de intervir militarmente na Ilha e instalar bases navais, já o Tratado condena o país a um subdesenvolvimento permanente, transformando-o em um monoprodutor de açúcar. Contra estas duas violações do direito internacional, uma política e a outra econômica, o povo cubano lutou por largos anos, conseguindo eliminá-las em 1934 e criando não apenas uma consciência nacionalista, mas sobretudo anti-imperialista. No entanto, penso que Fidel, nesta entrevista, foi leniente com Franklin Delano Roosevelt, ao lhe atribuir mérito por haver suspendido a Emenda Platt, quando na verdade o término da mesma se deveu à resistência do povo cubano. A política internacional da “Boa Vizinhança” de Roosevelt se destinava tão somente a atrair a América Latina para a estratégia da defesa dos interesses estadunidenses, pois a Segunda Guerra Mundial se aproximava e a Casa Branca necessitava de nosso território, de nossas matérias-primas e de nossos soldados. Teve Castro, igualmente, outras leniências como, por exemplo, com Kennedy ao diminuir sua responsabilidade na invasão armada de Praia Girón, afirmando que tudo fora planejado pela administração anterior, cabendo a ele apenas a implementação (lembro que Kennedy provocou a Crise dos Mísseis, pondo o mundo na rota de uma guerra nuclear)d+ com Carter, ao dizer que ele detinha uma ética religiosa muito forte e como tal se portava (lembro que Carter usou a política de direitos humanos na América Latina para atacar os comunistas de todo o mundo)d+ com João Paulo II, ao comentar que fora um peregrino da paz em suas viagens internacionais (lembro que João Paulo II usou a estrutura da Igreja, juntamente com a Agência Central de Inteligência – CIA -, para ajudar a solapar o socialismo real, condenando a teologia da libertação na América Latina e apoiando-a na Polônia, já que lá ela se opunha aos comunistas).  Roosevelt, Kennedy e Carter fizeram parte da presidência imperial, a qual é “a expressão institucional de uma realidade sistemática que surgiu da própria natureza do desenvolvimento capitalista, ainda que, sem dúvida, o regime de exceção instaurado depois do 11 de setembro de 2001 tenha acentuado de maneira inusitada a usurpação, por parte desta presidência, das funções legislativas e judiciárias em níveis ditatoriais”[2]. Ou seja, a presidência imperial foi e é um tema com uma pauta imperialista.

No entanto, a grande batalha de Cuba, diante dos Estados Unidos, se deu na defesa de sua soberania. Por muito tempo, o governo cubano tornou-se o único da América Latina a criticar e condenar “energicamente a intervenção aberta e criminal que durante mais de um século tem exercido o imperialismo norte-americano sobre todos os povos da América Latina, povos que mais de uma vez têm visto invadido o seu território, no México, Nicarágua, Haiti, República Dominicana ou Cuba”d+ a rejeitar e rechaçar a Doutrina Monroe “utilizada até agora, como previra José Martí, “para estender o domínio na América” dos imperialistas vorazesd+ a defender o direito à “ajuda espontaneamente oferecida pela União Soviética a Cuba, em caso de que nosso país fora atacado por forças militares imperialistas”d+ a ter relações diplomáticas com todos os países socialistas do mundod+ a lutar por uma democracia que “não pode consistir somente no exercício de um voto eleitoral, que quase sempre é fictício e está manipulado por latifundiários e políticos profissionais, senão no direito de os cidadãos decidirem […] seus próprios destinosd+ a levantar o lema de cada povo e de cada categoria de lutar por sua libertação”[3]. Estas ideias foram desenvolvidas de forma mais aprofundada na Segunda Declaração de Havana[4].

Por conta desta postura soberana, Washington se valeu do terrorismo de Estado para inviabilizar os avanços sociais de Cuba, começando com a guerra bacteriológica contra os canaviais, passando pela peste suína contra os animais e chegando à propagação da dengue contra os humanos. O terror praticado por Estados, diz Chomsky, é funcional, já que melhora o clima de investimentos no curto prazo. Segundo ele, a ajuda de Washington aos governos inclinados ao terrorismo está em “relação direta com o terror e a melhoria do clima de investimentos e em relação inversa com os direitos humanos”. Sendo os Estados Unidos um centro de poder, cujas opções políticas e estratégias calculadas produzem um sistema de clientes que praticam sistematicamente a tortura e o assassinato em escala assustadora, pode-se afirmar que Washington se tornou a capital mundial da tortura e do assassinato político. É o terror benigno, permitido aos Estados clientes que lutam contra o comunismo internacional, fazendo par ao terror construtivo, destinado aos Estados clientes que buscam manter e ampliar as áreas globais de investimentos estadunidenses[5].

Em 1992, o Congresso dos Estados Unidos promulgou a Lei Torricelli, que estabeleceu duas sanções fundamentais: 1) proibiu o comércio de filiais de companhias estadunidenses estabelecidas em terceiros países com Cubad+ e 2) vetou os barcos que entram em portos cubanos com propósitos comerciais a tocar portos estadunidenses, ou em suas possessões, durante os próximos 180 dias, a partir da data que deixou a Ilha. Logo depois apareceu a Lei Helms-Burton (1996), que trata do “direito das pessoas afetadas pela Revolução Cubana” e das “medidas a adotar contra aqueles que realizam negócios com Cuba”.

A crise migratória foi sempre a parte mais visível dos conflitos entre Havana e Washington. A Lei de Ajuste Cubano, adotada pelo Congresso dos Estados Unidos, em 2 de novembro de 1966, quando era presidente Lyndon B. Johnson, modificou o estatuto dos imigrantes cubanos, qualificando-os de “refugiados políticos”, com direito automático de asilo político e, ao mesmo tempo, com a permissão de residência permanente nos Estados Unidos, estimulando deste modo a emigrarem ilegalmente. Tanto que o cubano imigrante ilegal que consegue pôr os pés (pés secos) em território estadunidense é automaticamente acolhido pela Lei de Ajuste, enquanto o interceptado no mar (pés molhados) pode ser devolvido a Cuba. Tudo isso ignorando um acordo assinado entre os dois países que permite a entrada de 20 mil cubanos por ano nos Estados Unidos pelas vias legais. Na realidade, o que Washington estimula e incentiva é o roubo de aeronaves e de barcos – os quais não são devolvidos – com fuga espetacular que possa ser manchete nos jornais do mundo.

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[1] PIERRE-CHARLES, Gérard. Génesis de la Revolución Cubana. 7. ed. México: Editora Século XXI, 1987, p. 18.

[2] SAXE-FERNANDEZ, John. Terror e império: la hegemonia política y económica de Estados Unidos.  México: Editora Debate, 2006, p. 15.

[3] CASTRO, Fidel. Primeira Declaração de Havana, 1960. Documento publicado em vários livros e opúsculos.

[4] CASTRO, Fidel. Segunda Declaração de Havana, 1962. Documento publicado em vários livros e opúsculos.

[5] CHOMSKY, Noamd+ HERMAN, Edward. Washington y el fascismo en el tercer mundo. México: Século XXI, 1981, p. 160.