O uso constante da razão?

Prof. Espíndola em seu texto “O uso constante da razão” parece extremamente incomodado com a seguinte afirmação de uma jornalista

‘Liberdade, honestidade, respeito e justiça são todos princípios do cristianismo… ‘(*)

e infere que tal afirmação

“configura um total desrespeito aos que professam outras religiões, tais como o budismo, judaísmo e o hinduísmo, estas últimas bem mais antigas que o cristianismo.

A afirmação excludente da jornalista (mas que é ouvida frequentemente saindo da boca e da pena de cristãos) significa, na mais radical interpretação, que budistas, judeus e hinduístas não professam os princípios da liberdade, respeito, justiça e honestidade.”

A menos que a jornalista tenha explicitamente declarado isso, causa surpresa que alguém que diz usar constantemente a razão faça tal afirmação, pois comete-se um verdadeiro acinte as regras do bom pensamento lógico deduzir a partir da afirmação (*) que o hinduísmo, budismo, o judaísmo, o islamismo, o ateísmo etc. também não possam, cada um a sua maneira, expressar princípios de liberdade, honestidade, respeito, e justiça.

Prof. Espíndola, vejo que o senhor conhece muito pouco da história da igreja tanto antiga quanto moderna, e tal ignorância não pode passar despercebido. Veja, não é possível analisar a inquisição sem considerarmos antes o contexto e a visão do mundo que predominava naquela época, tampouco devemos ignorar como eram conduzidos tais processos da inquisição. Do jeito que o senhor coloca parece que não havia possibilidade de defesa do acusado, nem se permitia uma retratação do acusado o que pelo menos mostraria que não havia disposição por parte de quem julgava de sumariamente eliminar qualquer um que se opunha aos dogmas de fé. Como nem o senhor nem eu somos conhecedores da história da igreja é fato que não nos pode ser imputado saber todos esses detalhes, contudo, ainda que pese possíveis atenuantes, o senhor ignora solenemente que a própria igreja reconheceu seus erros e as injustas condenações da época sob a perspectiva do nosso tempo, o que indica uma honestidade intelectual por parte da igreja em enfrentar e rever seus posicionamentos históricos.

Mas, caro professor Espíndola, meu ponto central neste texto é mostrar que o seu aparente uso da razão é da mesma natureza com que um religioso faz uso da razão aliada a fé. Para demonstrar isso me detenho nesta sua afirmação,

Os princípios de liberdade, honestidade, respeito e justiça são obras primordialmente do Iluminismo, que nesta luta se insurgiu também contra o poder estatal da Igreja.

Afinal, esta sua exaltação do iluminismo não apenas é equivocada, já que na sua própria manifestação há uma similaridade com a expressão dos dogmas da religião. Com efeito, do ponto de vista político, o grande legado do iluminismo talvez tenha ocorrido na revolução francesa que proclamou os princípios da “igualdade, liberdade e fraternidade”, contudo, esta exaltação contraditoriamente segue um padrão implicitamente religioso pois deidifica algo que pretende ser eminentemente desprovido de quaisquer elementos da religião. De fato, vemos aqui que os “Dez Mandamentos” da lei mosaica são meramente substituídos pelo lema “igualdade, liberdade e fraternidade” ensinado de forma compulsória nas escolas francesas como se fosse uma nova catequese. Já a tal “República Francesa” é um ente abstrato reverenciado como deus e personificado como uma mulher em vários monumentos na França, da mesma forma que os judeus tiveram seu bezerro de ouro que adoraram no deserto.

E o que dizer da razão em si, outro fruto supervalorizado pelo iluminismo, que hoje é invariavelmente visto como a força motriz dos progressos científicos? Ora, é fato que a ciência é uma marca indelével do gênio humano, algo que de modo algum invalidaria alguém de considerar tal marca como uma manifestação da própria criação divina. Mas, não desejo ir tão longe nisso, ao menos por enquanto. Ora, temos hoje uma tendência de olhar tudo pelo crivo da ciência descartando tudo aquilo que não é científico como supérfluo. Mas, tal atitude também revela uma dose de dogmatismo, pois ao supervalorizar o método científico corre-se o risco de considerarmos que tudo que faz sentido tem que se submeter de alguma forma ao método científico. Ou seja, pelos critérios de nosso tempo a supervalorização da ciência se coloca como um novo dogma, da mesma forma que os dogmas da religião eram supervalorizados na idade média.

Analisemos agora de forma concreta a própria ciência de nosso tempo e verifiquemos se não há nela algum resquício de dogmatismo na forma como é praticada. Consideremos então o campo da “Física Teórica” É alentador que Paul Dirac com sua teoria do elétron em 1928 tenha previsto a existência de uma partícula de mesma massa e spin que o elétron, mas com carga elétrica contrária, o pósitron, que foi descoberto experimentalmente anos mais tarde por Carl Anderson em 1932. Vemos aqui um dos grandes trunfos do pensamento científico no que diz respeito a previsibilidade (Einstein não deixou de fazer o mesmo com a relatividade) . Mas, o modo de se “fazer” aquilo que chamam física teórica nem sempre tem esse respaldo experimental e, assim, há hipóteses que, a semelhança do que se sucede nas religiões, são tomadas com base simplesmente na fé de que estão certas. Por exemplo, não faz muito tempo era comum os teóricos da teoria de cordas afirmarem que o espaço-tempo teria 26 dimensões no caso do string bosônico, ou 11 dimensões no caso do superstring, mesmo sem ter nenhuma evidência experimental que indicasse isso. Diante do fato intuitivo que indica que o espaço-tempo é 4-dimensional criam mecanismos meramente hipotéticos para justificar o porquê dessas dimensões extras não se manifestarem explicitamente. O fato de tais hipóteses serem assumidas sem justificativa experimental alguma e persistirem por décadas é tão dogmático quanto as verdades afirmadas pelas religiões. Que o cientista de hoje sequer reconheça isso e advogue para si a primazia do discurso apenas repete a seu modo a mesma intransigência e o mesmo comportamento daqueles que instituíram a inquisição.

E o que dizer de algumas teorias científicas que a principio se têm como “corretas” pela vasta aplicabilidade que delas se obtêm? Seriam elas corretas só pelo fato de tirarmos proveito delas? Se for, estamos aqui diante de um engano ainda mais grave e sutil do que a simples afirmação de um dogma, pois uma vez reconhecido que estamos diante de um dogma este reconhecimento já traz em si um caráter que é similar ao de um axioma e, portanto, pode ser descartado por quem deseja adotar outro dogma/axioma para si. Agora, se aplicabilidade se tornar critério de aceitabilidade de algo, estamos então diante de algo novo que de certa forma também se impõe como dogma, já que passa longe de deter o sentido real do que se experimenta (se é que desejamos mesmo nos preocupar com isso). Neste sentido, a Mecânica Quântica talvez seja um dos exemplos mais desconcertantes. Como explica David Bhom em seu livro “The Undivided Universe” a teoria quântica usual se presta apenas a uma visão epistemológica de como nós obtemos nosso conhecimento de um sistema microscópico, e neste caso considera objetivamente como sistema tanto o que se observa quanto o meio de observação (aparato). Com isso, passa-se longe do que seria uma visão ontológica da natureza do sistema observado, ou seja, do que seria o sistema microscópico em si mesmo. Da mesma forma, a impossibilidade de se explicar o comportamento individual de um sistema microscópico, mas o de apenas prever o comportamento estatístico de muitos sistemas microscópicos idênticos, estes sim constituindo os resultados experimentalmente medidos, mostra que estamos longe de entender a natureza ontológica do mundo microscópico. Mais do que isso, se consideramos a aplicabilidade como critério relevante e nos contentamos apenas com a forma como conhecemos ou acessamos a realidade, temos aqui um paralelo interessante que nos permite tomar as Escrituras como forma legítima de se conhecer a Deus, tanto quanto a mecânica quântica usual nos permite conhecer um sistema microscópico. Com efeito, o ontológico analisado pelas religiões é Deus, sendo tal realidade acessada pelo que a expressão humana revela nas Escrituras através do uso da fé e da razão. As escrituras tornam-se então a fonte que nos permite conhecer a Deus, da mesma forma que a mecânica quântica nos permite conhecer os sistemas microscópicos1.

Vês então professor Espíndola, dei apenas alguns exemplos para demonstrar que todo o culto que o senhor faz à razão não é muito diferente da forma como os religiosos expressam seus dogmas. Mas, sem querer polemizar com o senhor, eu mesmo não levo muito a sério essa oposição entre ciência e religião, pois como lidam com domínios distintos não me parece consistente opor uma à outra. Pessoalmente, eu considero mais apropriado ver os dogmas de fé desempenhando o mesmo papel que os axiomas de uma certa construção matemática É esta proximidade que explica a motivação de alguns matemáticos puros a escrever em livros-texto passagens como essa que transcrevo abaixo2

We can imagine and consider many mathematical concepts, such as numbers, spaces, maps, dimensions, etc., that can be indefinitively extended beyong infinity in our minds. Contemplating our mathematical ability in such a manner, I can recall this phrase from the Scriptures:

Everything he has made pretty in its time. Even time indefinite he has put in their heart, that mankind never find out the work that the true God has made from the start to the finish. – Ecclesiastes 3:11

May our Maker be glorified! Our brain is the work of his hands, as in Psalms 100:3, Know that Jehovah is God. It is he that has made us, and not we ourselves. There are many reasons to give thanks to God. Our mathematical ability is one of them.

Sabe, prof. Espíndola, tal sublimidade de pensamento revelado pela citação acima é proporcional ao purismo da matemática, assim, devido ao caráter mais aplicado do que um engenheiro estuda talvez seja esperar muito que um engenheiro consiga fazer tal síntese, ou até mesmo entender o cristianismo aludido tão bem pelo prof. Sakai. Neste caso, não é culpa sua.

Notas

1. Entenda-se aqui sistemas microscópicos não relativísticos, segundo os cânones da mecânica quântica usual, muito embora David Bhom sustente que seu modelo ontológico se aplique também ao caso relativístico (ver, por exemplo, cap. 12 do “Undivided Universe”).

2. “Geometrical Aspects of General Topology” (Springer Verlag, 2013), Prof. Katsuro Sakai, Department of Mathematics, Kanagawa University, Japan

*Marcelo Carvalho
Professor do Departamento de Matemática da UFSC


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