Aprender a lição

Nenhuma palavra poderá trazer de volta a vida física de nosso caro Cancellier, mas podemos usar as palavras e ideias para expressar o que aprendemos com ele: dar valor à universidade e sua função social.

Fui seu adversário político nas eleições passadas, mas isso nunca significou inimizade ou deixar de reconhecer suas virtudes. Política não é (ou não deveria ser) terra arrasada, uma espécie de máquina de moer carne e de luta do bem contra o mal. Digo isso apenas com a intenção de fixar o território de minha reflexão sobre a lição a aprender, mesmo em momentos tão dolorosos como esse. Ressaltar ideias e práticas, mesmo em divergência ou mesmo as criticando frontalmente, deveria ser algo “natural” no meio acadêmico-universitário. Quando nos distanciamos dessa natural função, talvez estejamos construindo outra coisa, não a casa pública do conhecimento científico e da cultura.

Uma das maiores contribuições do nosso reitor foi a luta pela liberdade, dentro e fora da UFSC. A mesma liberdade que lhe foi tolhida, agora para sempre. Mas ele foi além, propôs um programa de gestão e foi vitorioso. Independentemente do tempo que teve para implementá-lo e de sua continuidade, creio que devemos todos, olhar e discutir, a partir da crueldade desse momento atual, o futuro da universidade.

Necessitamos traçar uma plataforma comum, com estratégias e objetivos de mudança.

Nosso ensino precisa ser pedagogicamente reformado, iniciando por repensar a posição do professor no contrato didático. O modelo no qual o professor é transmissor de conhecimento não serve mais, não funciona bem. Deve nascer um modelo no qual o professor é organizador de conhecimentos, informações e ideias, um promotor de talentos. Os meios para tal em grande medida já existem. Isso produzirá efeitos também na postura e disposição ao aprendizado por parte dos alunos, tirando-lhes da zona de conforto e do sistema herdado da educação básica. Produzirá efeitos, entre outros, na criatividade, flexibilidade intelectual, curiosidade e em iniciativa de investigação. Possibilitará, desse modo, uma aproximação em sala de aula entre pesquisa e formação.

A Universidade também necessita se conhecer, possibilitando a colaboração entre pares e fomentando assim a interdisciplinaridade e o desenvolvimento de uma visão sistêmica de ciência. Nossa identidade nacional deve orientar nossas pesquisas, que devem atender demandas e necessidades da sociedade. Esse objetivo não é contraditório com a internacionalização da Universidade. Pelo contrário, pode arquitetar a produção de conhecimentos e inovações para um diálogo qualificado e não subserviente com o exterior, em um mundo globalizado e mais competitivo. Afinal, não perdemos para outros povos na variedade e quantidade de recursos naturais e qualidades humanas, mas necessitamos superar o atraso em CET, entre outros quesitos.

Portanto, é inaceitável o silêncio da Universidade à falta de recursos que deem suporte à sua expansão. É também inaceitável o silêncio em relação ao desmonte em curso no que diz respeito à CETI. Ao se calar, a Universidade se apequena, como se apequena quando vive em torno de si própria e dos interesses corporativos.

A UFSC necessita ainda de reformas estruturais no campo da gestão. Valorizá-la significa profissionalizar, permanentemente, sua administração por meio da competência dos técnicos-administrativos, superando a deplorável prática de escolhas e preenchimento de cargos de gestão por meio do apadrinhamento. Um rigoroso sistema de transparência será a forma mais eficaz de prestar contas, substituindo assim a tentação do “denuncismo”, cujo pior efeito é o que hoje vivemos. Nossos Conselhos superiores precisam ser modificados, com abertura e maior representatividade da sociedade, evitando tentações corporativistas e de “controle político”. Estou certo, e já defendi isso, que precisamos ter um órgão colegiado de natureza administrativa, aliviando o exercício para as competências acadêmicas e políticas dos demais órgãos. Tal distinção de atribuições dos órgãos deve servir de sinergia ao desenvolvimento institucional, pois a gestão não é um fim em si mesma e nem para o exercício de poder de grupos de interesse. Ela serve para a plena e eficaz realização da função da Universidade, já mencionada acima.

Precisamos falar a linguagem dos mais jovens, caminhar com eles no melhor que a juventude oferece, que é a energia e os sonhos de mudança. Seus inconformismos devem ser valorizados e servir de estímulo ao debate de ideias, de aprendizado para a convivência com as diferenças, da solidariedade, da cooperação, da valorização da cultura e de forte crítica ao supérfluo, às coisas fáceis e imorais.

A hora é de tomar decisões pensadas para agir responsavelmente. O momento é esse! Mas é um momento de Universidade e não de indivíduos. Estou certo de que Cancellier almejava isso. Alguém que tolhe a sua própria vida, num ato político, registra não apenas uma situação dolorosa e irreversível para si. Mais que um pequeno aviso, manda uma grande e profunda mensagem, uma lição sobre seus mais altos valores, como a honra e a dignidade, sobre seus sonhos interrompidos. Meu amigo Cancellier deixou-nos uma lição sobre o valor da vida

pública e do apreço que tinha pela (nossa) Universidade.


Carlos Alberto Marques (Bebeto)

Professor no Departamento de Metodologia de Ensino