Carta de um pai

A carta que transcrevo a seguir se situa nos turbulentos anos que se seguiram as revoltas estudantis de 1968 e examina um ponto que ainda é bastante atual sobre  o efeito perverso da doutrinação a que muitos jovens são submetidos quando entram na escola e na universidade e que se reflete na mudança de comportamento identificado pelo pai de uma moça que fora detida pelo regime militar por ações subversivas.  Remetendo a nossos dias, se a “escola é com partido” o antídoto contra isso é vislumbrado na ação de grupos de estudos conservadores e na consequente propagação de ideias  conservadoras e tradicionais que deverão ocupar um espaço proeminente nas instituições de ensino se contrapondo a ideias que formam o ideário político-ideológico da esquerda. O embate está posto. Vamos a carta…


Marcelo Carvalho

Professor do Departamento de Matemática

 

Ilmo. Sr.

Major Carlos Alberto Brilhante Ustra

Capital

Prezado amigo

Como posso agradecer-lhe? Como posso agradecer a todas as autoridades militares? Como posso agradecer à sábia orientação do governo que, em tão pouco tempo, para tão imensa dimensão do problema, está catalisando a nossa juventude, conscientizando-a para a verdadeira luta pela legítima emancipação econômica e social brasileira?

Creio que jamais conseguirei transmitir todo o meu reconhecimento. Acho que somente outros pais que, como eu, viveram o drama de ter uma filha ou um filho, ainda crianças, maldosa, implacável, fria e vergonhosamente aliciadas pelos sequazes da subversão é que poderão compreender-me.

Que acontece a um pai quando, certa noite, ele abre a porta de sua casa e vê diante de si uma equipe de busca que veio para prender sua filha?

Que pensamentos lhe acodem ao cérebro e ao coração? Que tantas e estranhas perguntas ele se faz? É um pesadelo ou realidade? E por que essa sinistra realidade?

É realmente a minha filha que procuram? Mas ainda agora ela era uma criança, magrinha, frágil, de grandes olhos curiosos, engatinhando os primeiros passos, balbuciando as primeiras palavras, rabiscando os primeiros desenhos, tentando as primeiras letras, conseguindo as primeiras notas, vencendo com incrível força de vontade os obstáculos para colocar-se sempre como a primeira da classe – do primário ao colegial -, acompanhando sempre todas as limitações do nosso orçamento doméstico e sempre procurando corresponder a todos os investimentos feitos para a sua educação!

É mesmo a minha filha que procuram?

Mas ela teve sempre tanto senso de responsabilidade, acreditou sempre que só o trabalho e o esforço contínuo e a persistência é que ajudam a vencer na vida! Mas ela sempre foi dedicada à família, sempre ajudou os irmãos em tudo o que podia! Como, se ela dizia que o nosso País teria de ser grande, desenvolvido, rico, respeitado! Como, se ela dizia que para isso era preciso muito estudo, muito trabalho, muita cooperação! Quanto fervor em tudo o que ela dizia! Quanto brilho nos seus olhos – nos seus grandes olhos curiosos!

E, ultimamente, quanto espírito de sacrifício, quanta renúncia, quanta recusa a novas roupas, a um sapato novo, ao cabeleireiro, à manicure, às diversões mais comuns!

É mesmo a minha filhinha que procuram?

Hoje, passado quase um ano desde aqueles tenebrosos dias de setembro, posso pensar mais calma e confiantemente.

E quanta coisa afinal compreendo!

Como minha pobre filha foi enganada! Utilizaram todo o seu senso de responsabilidade, toda a sua persistência, toda a sua força de vontade, toda a sua crença no trabalho, todo o seu grande, imenso e generoso esforço, todo o seu fervor, todo o brilho de seus grandes olhos curiosos para fazê-la acreditar que o caminho da subversão era o único para ajudar todos nós, todo mundo, todo o Brasil, para nosso País ser grande, desenvolvido, rico, respeitado.

Tenho diante de mim dois retratos de minha filha: um do ano passado e outro bem recented+ um dos tempos tumultuosos em que estava sendo iludida e outro em que ela, agora livre, aproveita com toda a sua sinceridade e maravilhosa oportunidade que lhe concederam.

A menina inflamada, de cabelos descuidados, sem pintura, que se negava ir à manicure, que só usava “blue-jeans”, que recusava roupas novas e um novo sapato, foi substituída por uma moça madura, adulta, tranqüila, de cabelos cuidados e unhas pintadas, embora sem exagero, que briga com a costureira  quando o vestido não sai direito, que é exigente  na escolha do modelo do sapato novo, que voltou ao antigo namorado e pretende ficar noiva nos próximos meses.

Mas, agora compreendo como existe mais de um caminho para a busca da verdaded+ agora entendo o valor da tolerânciad+ agora assimilo todo o esforço do governo para eliminar etapas, engolir atrasos e construir mais depressa o Brasil grande.

Como ela entendeu finalmente o espírito da luta pelo nosso mar de 200 milhasd+ a guerra pelo nosso café solúveld+ a batalha do fretes marítimosd+ a necessidade da ocupação em curto prazo dos grandes espaços vazios através de projetos grandiosos tal como a Transamazônicad+ o valor do incrível progresso de nossas telecomunicaçõesd+ a inadiável urgência da alfabetização em massad+ a necessidade de dar prioridade à formação de técnicos para as exigências da expansão da indústria e racionalizar a agricultura.

O grande fator responsável por essa gradativa, porém firme revisão de idéias verificada nos últimos doze meses deve-se, indubitavelmente, à série de leituras orientadas pelo tenente-coronel Ary Rodolfo Carracho Horne, na 5a   Seção do II Exército em São Paulo, que se propôs – e conseguiu – mostrar à minha filha “o outro lado do governo”.

Hoje, minha filha está espontaneamente disposta e preparada para engajar-se no “Projeto Rondon”, afim de conhecer de perto a verdadeira e dramática dimensão dos problemas de nossa infra-estrutura social e juntar-se definitivamente aos esforços do governo na busca de soluções.

Estes dois retratos de minha filha que tenho diante de mim, contam toda essa história.

A grande oportunidade que lhe foi concedida está sendo aproveitada em todos os sentidos, durante todos os segundos.

Após a libertação, ela liquidou o restante do curso colegial, passando com notas muito boas, fez um mês de cursinho intensivo e, logo na primeira tentativa, foi aprovada no exame vestibular da USP, ingressando no Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia. O primeiro semestre da universidade ela também o venceu com notas altas e agora cursa o segundo semestre.

O crédito de confiança que, por seu intermédio, prezado amigo, as autoridades concederam à minha filha está sendo integralmente correspondido.

Aguardamos agora o julgamento da Justiça, dispostos a acolher a melhor decisão que houver por bem ser apresentada.

Eu estarei ao lado da minha filha em qualquer circunstância.

É muito possível que eu não tenha sido  melhor pai do que me propus a ser em todos estes vinte e dois anos de casado.

Talvez, se eu estivesse mais presente, mais atuante, tudo fosse diferente.

Talvez, se eu tivesse tido mais tempo para me dedicar à minha família eu pudesse ter dado mais assistência à minha filha.

É possível. É muito possível.

Não quero eximir-me de qualquer responsabilidade.

Direi apenas que, de todas as funções do mundo, a do pai é a mais difícil.

Tenho procurado desempenhá-la da melhor maneira possível.

Mas, para isso, que tempo livre temos nós todos, pais, além daquele que nos toma o trabalho e a obrigação imperiosa de prover ao sustento da família?

Vivemos todos numa selva de asfalto, onde a luta pela própria vida é travada em todos os cantos, vinte e quatro horas por dia. E na sobra para poder olhar o horizonte.

Mas tudo passará, se Deus assim o quiser.

Muito obrigado, pois, caro amigo, pela infatigável assistência dispensada à minha filha e a todos os meninos e meninas envolvidos no episódio.

Tenho certeza de estar falando não apenas em meu nome, mas em nome de todos os outros pais.

Recebemos uma nova oportunidade e tudo estamos fazendo para honrá-la.

Por favor, faça desta carta o uso que achar mais recomendável.

É a minha palavra de gratidão ao amigo e a todas as autoridades que lutam para reaver a juventude do Brasil.

Um grande abraço

C.S.


Obs. Esta carta foi enviada no dia 2 de agosto de 1971 ao Cel. Ustra pelo advogado, Dr. C.S, pais de C.S. (Helena ou Clarice), uma das meninas presas juntamente com Bete Mendes.

Fonte: A Verdade Sufocada: A história que a esquerda não quer que o Brasil conheça, Cel. Carlos Alberto Brilhante Ustra., pgs. 425-428