Escola sem ou com partido?

O projeto “Escola sem Partido” surge da percepção de que escolas e universidades  se transformaram em redutos onde predomina um discurso hegemônico e partidário com inclinação a esquerda. A confirmação desse viés ideológico, segundo proponentes do “Escola sem Partido”, fica evidente pelo agressivo patrulhamento da militância esquerdista que constrange todo aquele que defende uma agenda conservadora e/ou liberal no meio acadêmico.

Para corrigir isso, o projeto “Escola sem Partido” propõe que seja fixado em salas de aula um cartaz declarando os direitos e deveres de alunos e professores, medida que visa essencialmente coibir a doutrinação ideológica camuflada na forma de suposta liberdade de ensinar. A idéia geral é que disciplinas têm ementas que devem ser ministradas pelo professor sem que se faça proselitismo a favor de uma posição política, ideológica ou de uma causa particular. A dificuldade é exatamente definir onde uma dada narrativa extrapola os limites razoáveis da liberdade de expressão configurando uma cantilena que visa criar uma visão “capenga” e hegemônica que acaba sendo imposta aos alunos. Ora, se aceitarmos que nenhuma narrativa é neutra é certo também que a exposição de diversas narrativas sobre o mesmo tema, todas elas bem fundamentadas, acaba  criando uma situação equilibrada onde os alunos tem a possibilidade de estabelecer a sua própria reflexão sem adotar a perspectiva do professor. Isso é o que se entende por  “pluralidade de pensamento”. Assim, ao invés de optarmos por uma neutralidade que não contempla necessariamente a livre manifestação bem como uma exaustiva análise das várias perspectivas sobre um mesmo tema, o que devemos fazer é estabelecer diretrizes que garantam essa pluralidade de pensamento. Neste sentido, temos que defender tanto o direito do docente expor sua narrativa (seguindo o plano de ensino) quanto o direito do aluno expor uma outra narrativa, ainda que divergente daquela apresentada pelo professor, novamente, assumindo que ambas são bem fundamentadas.

Por exemplo, imaginemos uma aula de História do Brasil onde se analisa o evento singular ocorrido em 31 de Março de 1964. Já no próprio título da aula surge a dúvida se deveríamos denominar o evento como “Golpe”, “Revolução” ou “Contra-Revolução”, pois cada  termo  já indica uma leitura particular do evento. Não é de se estranhar que um dos livros da coleção de História do Brasil escritas pelo historiador Hélio Silva e que analisa este momento histórico tenha por título:  “1964: Golpe ou Contra-Golpe?” exatamente pelo desejo do autor em apresentar  uma análise  isenta e objetiva dos fatos (uma pequena ressalva é que seguindo outro historiador, Agnaldo del Nero Augusto, o título  mais apropriado talvez fosse “1964: Revolução” ou “Contra-Revolução”).

Devemos aqui estabelecer alguns princípios visando garantir a liberdade e pluralidade de pensamento. Ora, no caso selecionado sobre a análise do 31 de Março de 1964, como primeira regra geral entendemos que um professor não está proibido de expor sua interpretação e análise do evento adotando certos filtros, pois isso constitui a liberdade de pensamento do professor. Contudo, se deseja ser plural, como segunda regra geral entendemos que o professor  deve expor também outras abordagens sempre guiado pelo princípio de prover uma exposição equilibrada. Se não deseja ou não pode (pela falta de tempo ou de conhecimento), deve ao menos indicar aos alunos um panorama das outras perspectivas sobre o tema apontando referências e deixando que os alunos façam suas incursões estudando o tema. Como terceira regra geral, entendemos que havendo várias perspectivas não pode o professor avaliar o aluno exclusivamente pela sua perspectiva, do contrário, não se tem garantida a liberdade de pensamento do aluno. Infelizmente, muitos que se posicionam contra o “Escola sem Partido” não reconhecem a necessidade de nenhum desses três princípios, pelo menos isso nunca é mencionado na crítica ao projeto.  Muito se fala sobre a liberdade de cátedra, mas quase nada é dito sobre a liberdade de opinião dos alunos, inclusive o direito de discordar do professor. Vale lembrar que a autoridade acadêmica se manifesta unicamente na capacidade que se tem de defender racionalmente uma argumentação e isso é algo que tanto professor quanto aluno podem exercer.

 

Obviamente, a situação se mostra um pouco assimétrica quanto mais novos são os alunos, pois a capacidade de argumentação e de expressão apresenta nuances específicas conforme a idade. É aqui que, em nome da honestidade intelectual, o professor deveria tentar ser menos enfático sobre a sua perspectiva particular de modo a não influenciar seus jovens alunos a pensarem como ele. Eventualmente, um mesmo tópico poderia ser ministrado por mais de um professor de modo a garantir a pluralidade de perspectivas. Tal proposta parece ser essencial ao se tratar questões de sexualidade e de gênero nas escolas.

 

De fato, inicialmente observamos que não há um consenso sobre a razoabilidade de se introduzir questões de sexualidade e gênero as crianças, e o mesmo se aplica em outro grau a adolescentes. Uma argumentação falaciosa tenta fechar a questão alegando que “especialistas” nisso e naquilo argumentam que é um “tabu” achar que crianças não manifestam alguma forma de sexualidade (ainda que distinta da sexualidade manifestada pelos adultos). Mas, a descrença de muitos pais em relação ao clamor dos   especialistas têm fundamento e se deve ao fato óbvio de que não conhecemos as sensações sexuais da infância (se é que existem),  pois a criança não é capaz de entender e expressar o que falamos sobre sexualidade para que nos possa dar uma resposta concreta [1]. Além disso, a ausência de lembranças no adulto que indiquem alguma manifestação de sexualidade infantil pode ser uma indicação de que elas de fato não existem, não se tratando de uma mera incapacidade de reter a memória dessas sensações. Temos então que é perfeitamente aceitável muitos pais não considerarem viável que seus filhos sejam expostos a questões de educação sexual e gênero na escola. Ora, mas se queremos ser plurais pode-se argumentar a necessidade de se abordar a questão. Neste caso, é preciso  reconhecer que há também uma perspectiva cristã da sexualidade. Assim, ao falar de educação sexual nas escolas é preciso abordar todas as perspectivas. Infelizmente, não é o que acontece, pois falar de educação sexual quase sempre envereda por abordagens não cristãs pautadas em torno do ativismo LGBT que de certa forma entra em conflito com as convicções religiosas do indivíduo que é cristão. Ora, o estado laico reconhece e mantém a separação entre o Estado e a religião, onde a religião existe apenas como uma opção do indivíduo sendo então um direito garantido pelo próprio Estado que pretende ser “democrático e de direito”. Mas, se a escola – instituição regulada pelo Estado – insiste em se imiscuir em assuntos de foro íntimo como é a sexualidade, que o faça sem interferir  nas convicções religiosas do indivíduo. Constatando isso, há somente duas opções: ou se opta pela neutralidade e não se aborda o tema, ou se opta pela pluralidade e se aborda todas as perspectivas. Optando pela pluralidade uma possibilidade seria considerar tal conteúdo como opcional. Assim, professores seguindo um plano de ensino têm programado o que vão ensinar diariamente de modo que os responsáveis conhecendo de antemão o plano de ensino podem orientar seus filhos sobre o conteúdo que será ministrado de modo a decidir juntos se vale a pena comparecer a aula. Mas, há um outro ponto a ser analisado. Suponha que numa aula onde seja apresentada a sexualidade segundo uma das perspectivas não-cristãs um aluno cristão resolve divergir do que é apresentado expondo os elementos da sexualidade cristã. Seria o aluno considerado homofóbico por não valorar positivamente o homossexualismo citando o texto de Rm 1:26,27, ainda que fazendo isso de forma respeitosa ? Fica evidente que classificar de homofóbico um cristão por entender o homossexualismo de uma forma crítica é equivalente a suprimir o direito de um cristão ser cristão. É exatamente este ponto que justificaria uma opção pela neutralidade. Agora, como já dissemos, a defesa da pluralidade requer que tanto a perspectiva LGBT quanto a cristã sejam expostas. Como fazer isso de uma forma que ambos os lados respeitem o que o outro tem a dizer?

Consideremos um outro ponto polêmico. O STF reconheceu a legitimidade do ensino religioso opcional nas escolas públicas e isso abre a perspectiva de se formar grupos de estudos bíblicos nas escolas organizados por professores e/ou alunos, tal como já ocorre em muitas universidades. A possibilidade de iniciarmos uma nova geração de jovens trazendo as escolas a leitura e o estudo das Escrituras junto com a reflexão de grandes teólogos e pensadores como Pascal, John Owen, Richard Baxter, Paul Tillich, Karl Barth,  Schleiermacher entre tantos outros, bem como o pensamento original e robusto de apologetas como Van Til, Greg Bahnsen e Gordon Clark constitui uma jóia preciosa para  aqueles que desejam ter acesso a este pensamento cristão. A questão que surge é se o pluralismo de ideias abrangeria também o direito de se formar esses grupos de estudos bíblicos nas escolas. Não cabe aqui o argumento de que o estado laico proíbe isso, pois, sendo atividades opcionais, se não é proibido o ensino religioso opcional nas escolas públicas não haveria  razão para se proibir a formação dos grupos de estudo. Provavelmente, a oposição que decorre de tal proposta se deve mais ao reconhecimento da força irresistível que o pensamento cristão carrega em si mesmo, pois, se fosse antiquado tal pensamento haveria de se extinguir por si mesmo. Particularmente, eu me oponho ao Escola sem Partido exatamente pela defesa que ele faz da neutralidade, pois reconheço que devemos ter o direito de argumentar livremente e respeitosamente para que lado for. Ora, confiando que a mensagem das Escrituras é universal e que todos devem ter acesso a ela, caso desejem,  me parece certo que o  pensamento cristão é bastante eficaz no combate a tantas ideias absurdas que surgem nas universidades e que devem ser combatidas por serem erradas.

 

Temos de pensar seriamente nas implicações do projeto “Escola sem Partido”. Na minha opinião, o grande mérito do projeto está no diagnóstico de que realmente existe uma doutrinação ideológica nas instituições de ensino e que algo precisa ser feito. A forma mais eficaz de se combater esta doutrinação não parece ser evitando o debate, mas sim garantindo a pluralidade de pensamentos, afinal, ideias erradas e absurdas não se sustentam com o tempo quando são confrontadas com uma idéia infinitamente superior. O que temos que garantir é que de fato todas ideias serão igualmente acolhidas nas escolas e universidades.

 

 


Marcelo Carvalho

Professor do Departamento de Matemática

 

Notas

[1] É uma situação parecida quando no programa do canal “Animal Planet” encontramos “especialistas” em tubarões afirmando que tubarões quando atacam surfistas é porque o confundem com uma tartaruga, quando na verdade não temos como acessar realmente as razões que levam tubarões a atacarem surfistas. No caso abordado em meu texto, psicólogos, psicanalistas, estudiosos do gênero etc. podem sim elaborar suas teorias sobre o que bem desejarem, contudo, a autoridade acadêmica que seus pares conferem a suas teorias, diferentemente da universalidade dos resultados de uma experimentação no campo da ciência física, não apontam para nenhum fato inquestionavelmente verdadeiro. Trata-se apenas de uma ideia sem embasamento experimental. Tomar estas ideias como críveis e delas elaborar políticas públicas certamente levantam oposições.