A banalização do politicamente correto

Em seu texto “Brasil: Do sonho de potência ao sonho de grande Porto Rico”, prof. Rosendo Yunes faz críticas ao diplomata Ernesto Araújo, futuro chanceler de relações exteriores do governo eleito e, entre outras coisas, envereda por uma seara que mistura conceitos delirantes e equivocados que engloba a concepção de Deus na perspectiva cristã (como se fosse algo homogêneo) até o que seria a vocação do Brasil como nação, adotando a perspectiva Getulista. Tentarei mostrar que tal argumentação segue um padrão recorrente de falar algo que num primeiro momento soa como politicamente correto, mesmo que tudo não passe de incorreções banais.

 

Prof. Yunes inicia seu texto elaborando sobre as ideias de um filósofo de nome Nietzsche e escreve que 

“Para Nietzsche a chegada do niilismo foi produto de que os valores cristãos tinham perdido o seu poder em pessoas e na sociedade, que expressaram esta situação com uma simples frase “Deus está morto”.”

E, tentando identificar em nosso tempo os desdobramentos do que o tal Niestzche pensou, prof. Yunes explica que o Deus que Nietszche diz estar morto

“É o Deus dos Impérios, o Deus de Roma e o Deus do Império americano que possui 800 bases militares, distribuídas em 160 países, sem contar os porta-aviões, com tropas da ordem de 250 mil soldados, com um custo em 2014 de 85 bilhões de dólares. A área ocupada é de 2.200.000 hectares.  O Império Romano tinha 35 mil bases de 5 mil soldados.”

Em seguida, prof. Yunes oferece uma síntese “dialética” concluindo que

 

“O nosso Deus, o Deus da imensa maioria dos brasileiros, é o Deus da vida, o Deus dos pobres e humildes o Deus libertador.  É o Deus que corresponde ao ego “espiritual”, que outorga identidade a toda pessoa e sociedade, é o ego da solidariedade, da fraternidade, da participação de todos sem  distinções odiosas, numa sociedade onde o bem comum é prioritário, e não o individualismo niilista, hedônico do ego que denomino reptilico, primitivo, que corresponde no cérebro humano a estruturas  emergentes em  280 milhões de anos de evolução. Enquanto as estruturas do ego mamário correspondem a 95 milhões de anos de evolução e a do ego espiritual, o ego mais profundo e real, com a emergência do Homo sapiens a somente 80 a 50 mil anos.”

O primeiro equívoco é que o Deus imaginado pelo prof. Yunes como descrito no parágrafo acima não passa de uma criação fictícia e “politicamente correta” de nossos tempos que não encontra respaldo bíblico. Com efeito, qualquer um que defina Deus como “correspondendo ao ego (?) da solidariedade, fraternidade numa sociedade onde o bem comum é prioritário” incorre em erro se não definir antes o que entende ser o “bem comum” na sociedade, ou quem define o que é “o bem comum”. O problema fica explícito se perguntarmos: “O direito ao aborto é um bem comum?” Se for, então não seria corroborado pelas Escrituras na defesa que ela faz da vida humana. Também, devemos pensar como as Escrituras definem os pobres e humildes? Seriam pobres os que carecem de bens materiais ou aqueles que tendo boas disposições interiores ainda assim são espiritualmente empobrecidos pela falta de conhecimento da verdade evangélica ? Talvez o sermão da montanha esclareça este ponto, onde os bem-aventurados são identificados sobre uma ótica ampla que de modo algum se restringe ao que em nossos dias se convencionou tomar como pobre, isto é, como alguém desprovido de bens materiais. Afinal, Jesus, que as Escrituras identificam inequivocamente como Deus, se dirigiu a todos, tanto ao humilde Lázaro quanto aos mais abastados, por exemplo,  Zaqueu e Nicodemos. Jesus não excluiu ninguém, fosse ele materialmente rico ou pobre, e tampouco recriminou a mulher que lhe ungiu derramando um caríssimo perfume em seus pés e os enxugou com seus cabelos, e que foi criticada por  alguns que estavam com ele alegando que o perfume poderia ter sido vendido e o dinheiro dado aos pobres, algo que Jesus não corroborou. O Jesus das Escrituras definitivamente não é refém de nenhuma declaração conciliar que proclama opção “preferencial pelos pobres”, ou da pregação de padres ou pastores que pervertem Jesus como andando somente nas periferias. Não! Esse Jesus andava onde ele queria e resgatava todos os que precisavam e se mostravam solícitos a palavra, independente da sua condição social, até porque diante de Deus todos estão desprovidos de qualquer bem, todos são igualmente necessitados da graça salvífica.

Outro equívoco é sobre a declaração do tal Nietszche de que “Deus está morto”, pois qualquer que seja o sentido que ele imaginou para dar tal declaração, ela não traz nada de relevante para o cristão, pois trata-se de uma declaração que toma por base unicamente considerações humanas fora do domínio das Escrituras e, assim, sem a autoridade impressa pela revelação bíblica. Para a crítica fazer sentido para um cristão, o tal Nietszche teria que argumentar biblicamente a sua tese, mas, uma vez que usa elementos da filosofia, ele submete as Escrituras ao crivo da razão filosófica que sendo fruto apenas da razão humana não compreende os preciosos insights do Espírito Santo e por isso mesmo se mostra inadequado para se pensar Deus, cujo conhecimento só temos acesso pela revelação e uso da razão humana. Voltarei a este ponto a seguir.

 

Voltando ao Brasil, os milhões de eleitores evangélicos que deram seu voto a Jair Bolsonaro se identificam com alguns pontos defendidos pelo futuro chanceler Ernesto Araújo, principalmente em relação à forma como ele critica o globalismo e defende o ocidente como fundado em raízes cristãs. A proximidade do Brasil com Israel, defendida por essa maioria evangélica, também se explica pelo reconhecimento de que Israel é o povo que Deus inicialmente formou para se revelar a toda a humanidade. Assim, pode-se até não gostar da forma como o chanceler Ernesto Araújo vê o mundo, Celso Amorim que o diga, contudo deve-se reconhecer que no Brasil esta parece ser a forma legitimada pelas urnas.

 

Podemos conjecturar que o resultado das eleições no Brasil não foi um fenômeno casual, mas sim algo que se insere num contexto global onde vemos a emergência de um conservadorismo de direita em vários cantos do mundo. Os Estados Unidos é o mais fiel representante desse conservadorismo. Herdeiro direto da tradição puritana dos primeiros colonos europeus que ali chegaram em 1620 na região de Cape Cod no estado de Massachussets, aquela nação sempre teve uma forte presença evangélica que moldou e ainda molda a sua sociedade, diferentemente das nações européias onde outrora o cristianismo servia como “cimento” social. De fato, os países europeus têm recebido um contingente considerável de imigrantes muçulmanos, contudo, não parecem bem sucedidos em fazer com que essa nova geração de filhos de imigrantes assimile os valores “seculares” da ainda majoritária população não muçulmana. Conflitos envolvendo jovens muçulmanos na França que enfrentaram a polícia quando um deles foi morto alguns anos atrás, bem como a reação tímida da população muçulmana que não condenou enfaticamente os atentados de dois anos atrás num show de heavy-metal em Paris e também o atentado contra o jornal provocativo Charlie-Hebdo, mostram que surge na Europa um novo fenômeno – a “islamização” do continente – cujos efeitos ainda não são totalmente entendidos, mas que muitos antevêem como afirmando vários pontos comuns à religiosidade desses imigrantes. Mesmo a Inglaterra, pretensamente protegida por estar separada da Europa continental, não parece estar imune da “islamização”, basta compararmos a Capela de Westminster  há 60 anos atrás quando o pastor  Dr. Martin Loyd Jones atraía multidões para estudar versículo por versículo a Carta aos Romanos, algo que ele fez por 14 anos, e a total ausência de iniciativas semelhantes hoje, quando muçulmanos de forma provocativa se reúnem para orar no lado de fora da Capela de Westminster[1]. Acredito que esse declínio justifica a crítica de Ernesto Araújo sobre a decadência de uma Europa que parece não identificar mais suas origens. Sem essas origens, que resistência pode uma Europa descristianizada oferecer à emergência de uma nova cultura centrada em valores do Islã? Tornando-se maioria, os muçulmanos certamente não aceitarão as pautas ditas progressistas como gênero e educação sexual, estandartes do pensamento secularista, e pressionarão por algo diferente e mais atinados a sua cultura e visão de mundo. O meio pacífico que farão isso é participando da política e formando consenso. Agora, a tensão crescente entre essas duas tendências, ateísmo versus islamismo, nos países europeus penderá para um lado, pois elas não se mostram capazes de coexistirem. Mas, seriam os valores do ateísmo e suas tendências pós-modernas uma resistência eficaz? Ora, examinando o passado tido por “medieval”, lembramos que foi o embate de séculos atrás entre cristãos e muçulmanos que preservou o cristianismo e, por tabela, o que somos hoje. Se em nosso tempo atual a batalha é cultural e intelectual, não há porque acreditar que o cristianismo não ofereça uma resistência superior e mais embasada do que oferece as tendências de agora, centradas em modismos como marxismo, gênero, feminismo etc.. Tais ideias não agregam, portanto, não formam um cimento social como o cristianismo é capaz de formar, assim, a única força capaz de se contrapor culturalmente a essa islamização da Europa seria mesmo o cristianismo. E aqui voltamos a declaração nietzschiana de que se “Deus está morto” então não resta mais esperança alguma para a Europa.

 

Em relação ao saudosismo Getulista que o prof. Yunes parece admirar, lembremos que Getúlio Vargas deu um golpe em 1937 criando o Estado Novo e impediu eleições livres que provavelmente teria consagrado o candidato integralista Plínio Salgado, legítimo representante  ao pleito, e cujas ideias nacionalistas e de grande aceitação popular teria, já nos anos 30, dado uma nova estatura ao Brasil. Já  empossado anos mais tarde, dessa vez pelo voto popular, a bravata de Getúlio Vargas de ser vítima de “forças ocultas” nada mais era que o reflexo de um governo acuado por denúncias de corrupção e que demonstrava grande desconforto com a oratória brilhante de um opositor político, o jornalista e então governador da Guanabara, Carlos Lacerda. O resto é história. O contexto de agora é outro e o que levou Bolsonaro ao poder é um inconformismo generalizado com a corrupção do PT, um partido que traiu todas as expectativas de decência e boa governança.

Por fim, não vejo muito sentido na insinuação de que o Brasil estaria entre dois mundos, de um lado sendo uma potência local e do outro  assumindo uma situação semelhante a de Porto Rico. Na verdade, do jeito que o prof. Yunes coloca parece que Porto Rico se ressente de ser um protetorado dos Estados Unidos, mas, um referendo realizado em 2012 revelou que 61% defendiam que Porto Rico que se tornasse um estado americano, 33% defendiam apenas maior autonomia, e apenas 5% defendiam independência [2], ou seja, não parece que os porto-riquenhos desejam deixar de manter seu vínculo com os EUA.  Diferenças a parte, ninguém deseja que o Brasil seja subserviente a nenhuma outra nação. Diferente das relações bilaterais entre Argentina e EUA que certa vez o presidente argentino Carlos Menem vislumbrou dizendo que a “Argentina deveria ter relações carnais com os EUA”, como Bolsonaro já afirmou ao Brasil basta ter relações justas e equilibradas com outras nações, sem o viés ideológico, apenas isso.

Notas:

[1] https://www.youtube.com/watch?v=0-Zzace1pac

[2] https://www.usatoday.com/story/news/nation/2012/11/07/puerto-rico-referendum/1689097/


Marcelo Carvalho

Professor do Departamento de Matemática