MÊS DA MULHER: Março: mulheres, LGBT e lutas pela democracia sexual – presentes!

Rosa Oliveira*

Já que o mês de março é o mês de luta das mulheres, é bom lembrar que uma de suas características mais potentes é a de alcançar a todos e todas, o que nos demandaria uma compreensão que ultrapassa necessidades, corpos e desejos de sujeitos que se enquadraram, em algum momento de suas vidas, na categoria “mulheres”, para indagarmos sobre que tipo de sociedade queremos deixar comolegado às novas gerações.

Muito se falou sobre a luta das mulheres ser paradoxal, porque para além de reivindicar igualdade, desde o sufragismo ou as reivindicações por iguais condições de salário e trabalho, era preciso manter a noção de “diferença” presente no interior deste argumento, o que tornou sempre muito complexa e tensa a articulação do discursofeminista em busca de “direitos iguais”. Esta dificuldade permaneceu sensível ao longodo tempo, mas nisso reside, talvez, sua maior riqueza, pois mais do que nunca, é necessário afirmar o respeito às diferenças como valor fundamental para garantia de uma vida digna.

Joan Scott (2005) sintetiza esta preocupação, quando nos fala: “os termos deexclusão sobre os quais essa discriminação está amparada são ao mesmo temponegados e reproduzidos nas demandas pela inclusão”. Ao dizer isso, a historiadora norte-americana recordava que as “identidades de grupo compõem um aspecto inescapável da vida social e da vida política”, e sua interconexão torna‐se possível pois“as diferenças de grupo se tornam visíveis, salientes e problemáticas em contextospolíticos específicos”, fazendo mais sentido então indagar de que modo “os processos de diferenciação social operam” para desenvolver análises de igualdade e discriminaçãoque tratem as identidades não como entidades eternas, mas como efeitos de processos políticos e sociais.

Assim, quando pensamos na imensa agenda que a luta das mulheres abrange, um dos efeitos mais importantes da tomada de consciência coletiva sobre a noção de igualdade em termos de gênero é considerar que sua ausência compromete gravemente a democracia, o que torna a vida de todas as pessoas, no mínimo, mais dura de ser vivida.

No Brasil e no mundo e em muitos contextos, mais do que nunca o feminismo tem sido convocado para a tarefa de ser instrumento da luta pela manutenção de conquistas, antes mesmo de buscar avançar sobre o que é hoje experimentado como derrota para muitos sujeitos. Numa sociedade contemporânea extremamente violenta em diversos níveis, temperada por um fascismo social que vem ganhando espaços institucionais de decisão e formulação de políticas importantes em nível global, há temas que se mostram urgentes para esta pauta integrada, como é o caso da luta contra a homofobia, que há tempos rompeu a barreira de tema restrito ao anonimato, à jocosidade e a insegurança das relações privadas, ganhando força na demanda por igualdade de direitos, dinamizada pela aliança entre o “movimento de mulheres” e ochamado “movimento LGBT”.

Partir da teoria feminista torna possível compreender a argumentação do movimento LGBT brasileiro em torno de “direitos iguais” na mesma lógica paradoxalobservada por Scott. Por serem os homossexuais iguais em termos de espécie ediferentes dos heterossexuais em seus modos de vida, o que implica discriminações de várias ordens, chegando mesmo a ameaçar a vida e a integridade física de milhares de pessoas,o atendimento de um estatuto mínimo de igual consideração de interesses invocaria como básico o reconhecimento das uniões entre pessoas homossexuais como entidades familiares.

Isso é notável no Brasil atual, em que observamos que mesmo depois de uma decisão crucial tomada pelo Supremo Tribunal Federal, com força de vincular todos os tribunais pátrios a caminharem no mesmo rumo, de modo a conferir igualdade de direitos a casais hetero e homossexuais quanto ao efeitos jurídicos de suas uniões estáveis, ainda assim os casais de LGBT deparam-se com as objeções de consciência de diversos profissionais do direito, entre julgadores e membros do Ministério Público, valendo-se da ausência de lei específica para rebelarem-se contra a determinação da suprema corte.

Não precisamos ir muito longe para observar um exemplo concreto desse comportamento reativo: há notícia que no norte da Ilha de Florianópolis, o representante do Ministério Público, responsável, entre outras coisas, pelos pareceres relacionados às habilitações de casamento civil, vem paulatinamente negando os mesmos direitos à casais LGBT*, sob a alegação de que a Constituição Federal considera“casal apto a contrair núpcias” apenas aqueles compostos pelos heterossexuais. Essaatitude tem levado os casais (quando não desistem de sua intenção) novamente à judicialização do reconhecimento de suas conjugalidades, tudo na contramão da instrução do próprio Conselho Nacional de Justiça aos cartórios de todo país, que a partir da decisão do STF, procurou dar encaminhamento a seu efeito mais prático, que era justamente encerrar a polêmica nos tribunais, desafogando o judiciário estadual deste tipo de demanda.

Sem mencionar o atual estado de coisas em nível de governo, em que cotidianamente temos nos deparado com muitos retrocessos em termos de igualdade de gênero, as reivindicações no campo do direito de família há muito tempo são anuladas, se pensarmos no poder legislativo federal, que poderia em tese resolver a situação editando uma legislação inclusiva.

Como exemplo podemos citar 22 propostas legislativas federais ligadas ao tema das conjugalidades homoeróticas em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal ainda em 2011, mesmo ano da decisão do STF, em que se via a seguinte situação:

(…) 09 (nove) disposições “a favor”, 08 (oito) “contrárias” e 03 (três) que poderíamos classificar como “neutras”. Sendo que estas últimas não dispõem sobre temas em que a visibilidade das conjugalidades homoeróticas não aparece claramente, mas que de alguma forma, poderia ser um dispositivo interpretado de modo a favorecer o reconhecimento de efeitos jurídicos às uniões entre homossexuais. […] Outros projetos que são contrários à afirmação de direitos sexuais à população LGBT* tratam dos temas não só relacionados à proibição da equiparação das relações entre pessoas do mesmo sexo ao casamento ou a entidade familiar – como é o caso do PL 5167/2009, de autoria do Deputado Paes de Lira, do PTC/SP – mas, também, à adoção por casais de homossexuais, caso do PL 3323/2008, proposto por Walter Brito Neto (PRB/PB) e que veda expressamente a adoção por casal do mesmo sexo, ou ainda o PL 7018/2010, do Deputado Zequinha Marinho (PSC/PA). (OLIVEIRA, 2013: 86-7)

Naquele contexto, os registros traziam ainda projetos de decreto legislativo

propostos por parlamentares evangélicos (que por inconstitucionalidade, diga-se de passagem, foram arquivados) como por exemplo o PDC 495/2011, de autoria do Dep. Pastor Marco Feliciano, do PSC/SP e 232/2011, do Dep. André Zacharow, propondo“convocar plebiscito sobre o reconhecimento legal da união homossexual como entidade familiar”, com a pergunta: “você é a favor ou contra a união civil de pessoas do mesmo sexo?”, dando o tom da posição diante do tema assumida por este setor religioso, assim digamos, dos parlamentares federais.

Quando se analisa, em acórdãos judiciais, a tese da contribuição direta ou indireta para a formação do patrimônio do casal enquanto argumento central relacionado ao trabalho doméstico de uma das partes, em particular nas decisões denegatórias de direitos antes da solução trazida pelo Supremo Tribunal Federal em 2011, fica explícito ainda o uso da “dualidade sexual” como base da distinção feita entre os conceitos jurídicos de sociedade de fato (“grosso modo” comparáveis às sociedades comerciais) e união estável (que remete ao conceito de família). Inclui-se nesta lógica aatribuição de “menos valor” ao trabalho doméstico pelos parceiros do mesmo sexoenvolvidos nos litígios judiciais para justificar a participação econômica na formação do patrimônio dos parceiros gays, agregando-se o fato de que grande parte das decisões judiciais até 2011 não reconhecia a existência de um casal, exigindo a presença do par“homem-mulher” (biologicamente definidos) para que o enquadramento legal fosse possível no conceito de união estável.

Eric Fassin (2006) desenvolveu uma importante noção neste sentido, ao tratar do campo das sexualidades, quando salienta o papel particular que “a democraciasexual” desempenha hoje: “se gênero e sexualidade são questões privilegiadas atualmente, é que essas questões representam a última extensão do campo democrático. Nós acreditávamos que eram ainda naturaisd+ as descobrimos políticas”.

A tensão sempre atual entre movimentos sociais e Estado na busca por reconhecimento de direitos fundamentais no campo do gênero é mais do que nunca atualizada por um cenário de recrudescimento autoritário em nosso país, o que coloca em xeque conquistas e torna a discussão em torno da democracia e da liberdade fundamental para a sobrevivência do tão combalido Estado democrático de Direito no Brasil. Os desafios são muitos, e a caminhada longa, mas nela estaremos presentes, inteiras e lutando até o final.

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*  Advogada, mestre em direito e doutora em ciências humanas pela UFSC.

Referências

FASSIN, Eric. FASSIN, Eric. « Les frontières sexuelles de l”État » Varcarme 34, hiver/2006

OLIVEIRA, Rosa M R de. “Direitos sexuais de LGBT* no Brasil: jurisprudência, propostas legislativas e normatização federal.” Brasília : Ministério da Justiça, Secretaria daReforma do Judiciário, 2013.

SCOTT, Joan W. “O enigma da igualdade”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis,13(1): 216, janeiro‐abril/2005 ‐ p. 11‐29