“É Triste não ser branco” – Lima Barreto

Por Waldir José Rampinelli

Li a obra completa de Lima Barreto. São 17 volumes, publicados pela Editora Brasiliense, em 1956. Uma preciosidade para entender e compreender a história da Primeira República, bem como as relações de poder daquele período, que se repetem hoje.

Lima Barreto é o homem da “literatura militante”. Este termo foi empregado por Eça de Queirós, ao comparar o espírito da literatura francesa com a portuguesa. Enquanto as letras gálicas se ocupavam do debate das questões de sua época, as lusitanas limitavam-se às preocupações da forma, dos casos sentimentais e amorosos e da idealização da natureza. Aquelas eram militantes, ao passo que estas contemplativas e de paixão. “A literatura”, diz Lima Barreto, “é de alguma forma um meio de nos revelar uns aos outros; se não é o seu principal destino, é uma das suas funções normais.” Dentro desta perspectiva, o literato deve ser um semeador de ideias, um batedor do futuro. Lima, diz Astrojildo Pereira, pertence à categoria dos “romancistas que mais se confessam”. Os traços de sua biografia, dos gestos exteriores aos mais íntimos, se encontram dispersos ao longo de seus livros. Sua obra é auto revelação. Ele arrastou a vida com muito esforço.

Cemitério dos Vivos, livro que Lima Barreto deixou inacabado, possivelmente é nele que mais fala de si. Internado, devido ao alcoolismo, chega a dizer: “O que todos julgam, é que a cousa pior de um manicômio é o ruído, são os desatinos dos loucos, o seu delirar em voz alta. É um engano. Perto do louco, quem os observa bem, cuidadosamente, e une cada observação a outra, as associa num quadro geral, o horror misterioso da loucura é o silencio, são as atitudes, as manias mudas dos doidos.”  

Nos tempos de colégio, não se deu conta das diferenças de classes, mas quando chegou à Escola Politécnica, sim. O mesmo se deu com o personagem do Gonzaga de Sá, que depois de homem feito, deu-se conta de sua condição, menosprezado por “olhares vesgos e idiotas”, que não se despregavam dele “nos cafés, nas ruas, nos teatros”.

– “Vejam só! Um mulato ter a audácia de usar o nome do rei de Portugal!”.

– Uma bela tarde, um grupo de estudantes decidiu pular o muro do velho teatro para ver a companhia italiana que ensaiava a Aída. Todos foram, menos Lima Barreto que tomou o rumo da pensão. Quando seu amigo Nicolau Ciancio chegou no quarto, perguntou-lhe:

– Por que você não veio?

– Para não ser preso como ladrão de galinhas!

– ?!

– Sim preto que salta muros de noite só pode ser ladrão de galinhas!

– E nós, não saltamos?

– Ah! Vocês, brancos, eram ‘rapazes da Politécnica’. Eram ‘acadêmicos’. Fizeram uma ‘estudantada’… Mas eu? Pobre de mim. Um pretinho. Era seguro logo pela polícia. Seria o único a ser preso. 

Lima é um nacionalista, criticando duramente a ideologia eurocêntrica; um autodidata, desmascarando o academicismo das universidades produtoras da “doutomania”; um defensor da igualdade entre homens e mulheres, rejeitando o feminismo pequeno burguês de Bertha Lutz; um militante da causa negra, com uma espada afiada contra o preconceito, como por exemplo, o do Barão do Rio Branco que na condição de ministro das Relações Exteriores queria “eleganciar” o Brasil; um crítico contumaz do monopólio da imprensa, mais especificamente do jornal “O Globo”, como também dos políticos de profissão; um combatente do latifúndio, propagando a necessidade da reforma agrária, indispensável ao desenvolvimento da economia nacional; um radical, com grandes simpatias pela Revolução Francesa e Russa (infelizmente, nada fala da Mexicana);enfim, um socialista propagador da luta de classes, que apoia as greves operárias; um anti-imperialista, que afirma que o Brasil não passava de um “disfarçado protetorado” dos Estados Unidos; um simpatizante do marxismo, que elogia os acontecimentos russos de 1917; um anticlerical, que mostra a dominação ideológica dos conventos; um anarquista, que afronta a organização social. Tudo isso ao mesmo tempo. “Oh! A sociedade repousa sobre a resignação dos humildes”.

Lima está inteiramente conectado com os grandes problemas de seu tempo e orientado o seu espírito para tais cogitações.  Aconselha um jovem escritor a “incorporar as suas leituras a si mesmo”.

A pena de Lima Barreto reserva boa tinta contra o academicismo. Sábio, diz ele, é aquele que cita mais autores estrangeiros; quanto mais de país desconhecido, mais sábio o é; sábio é aquele que escreve livros com a opinião dos outros.

Já um doutor, formado na “doutomania”, “é um sujeito medíocre intelectualmente que possui um diploma para exercer uma certa e determinada profissão liberal, mas que, em geral, não a executa. Entretanto, ele usa o título para espantar o povo e mantê-lo à distância ou cavar posições. Esse respeito supersticioso das pessoas pelo doutor degenerou o ensino, de forma que alguém que queira subir, que tem ambições legítimas ou equívocas, a primeira coisa que faz é arranjar um diploma de doutor, custe o que custar, haja o que houver”.

“Quem tem o título de doutor dispõe de privilégios especiais, alguns constantes em leis e outros consignados em costumes. Infelizmente, o povo aceita esse estado de coisas e tem um respeito religioso pela nobreza de seus doutores. As moças ricas buscam casar-se com um doutor e as pobres quando o logram, enchem de orgulho a família; a formatura de um doutor é dispendiosa e quanto mais medíocre a faculdade, mais pomposo é o ato de entrega do diploma; os pobres não conseguem participar da formatura; o nobre doutor tem prisão especial, mesmo em se tratando dos mais repugnantes crimes”. Lima parece estar escrevendo hoje.

“Por tudo isso”, diz Alceu Amoroso Lima “é que sua obra é de uma humanidade tão pungente. É a obra do Pobre, que conhece a vida por dentro e sabe exprimi-la com uma simplicidade patética. Seus romances não foram feitos, foram nascidos”. Por sua vez Jackson de Figueiredo diz que Lima é o “tipo perfeito do analista social, mas um analista que combate, que não ficou como Machado de Assis, por exemplo, no círculo de uma timidez intelectual esquiva ao julgamento. Ele não se limita a mostrar todos os fundos da cena, o que vai pelos bastidores da nossa vida; toma partido, assinala os atores que falam, a linguagem da verdade, mostra o que há de falso, de mentiroso na linguagem dos outros”.  Por sua vez, José Lins do Rego vai dizer que “o manso Machado de Assis não nos dá esperança; o “vazio”, o “inconstante”, o terrível demolidor Lima Barreto nos faz confiar num mundo melhor”.

Lima Barreto, um escritor realista e um precursor do modernismo, é uma leitura obrigatória para todos os que pretendem alongar a vista sobre a história do Brasil.

Waldir José Rampinelli é professor do Departamento de História da UFSC

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