Dois Pelés, da bola e da UFSC

* Por Armando de Melo Lisboa

“Não sabendo que era impossível, foi lá e fez” (ditado popular)

Nelson Rodrigues, em clássica e premonitória crônica meses antes da Copa de 1958 intitulada “A Realeza de Pelé”, deslumbra-se com a “autoridade irresistível” de quem “intimidava a própria bola”, a qual vinha “aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha”. Registra então o susto que tomou ao descobrir que aquele garoto tinha “inverossímeis 17 anos!”.

Sabedor do poder magnético do futebol, o esporte mais popular, e descortinando que “realeza é, acima de tudo, um estado de alma”, Rodrigues sentencia que com Pelé os brasileiros superarão “a alma dos vira-latas” e serão vencedores, sendo o primeiro fruto a conquista da Copa daquele ano, profetiza.

Primeiro jogador a dominar magnificamente todos os fundamentos do futebol, Pelé chutava com os dois pés, cabeceava primorosamente, dava “passes que surpreendiam até seus companheiros, matava a bola no peito como se a aninhasse feito um bebê no colo” (Juca Kfouri). Há tempos “Pelé” é sinônimo de
perfeição, adjetivo “daquele que é o melhor naquilo que faz”.

Neste sentido, trago um outro Pelé, agora da academia. Mineiros, juntos partiram fisicamente no fecho de 2022.

Paulo Henrique Freire Vieira, autêntico professor titular da UFSC (Sociologia Política), fez igualmente de sua profissão uma arte antes que um ofício, dela dominando todos os fundamentos, entre eles: ensino, pesquisa e extensão. É sabido que a universidade resulta da confluência destas três áreas. Mas, é muito raro exercer maestria nelas conjuntamente, especialmente encontrar pesquisadores de renome atuando na extensão, lacuna que Paulo suplantou ao criar ainda nos anos 1980 o Núcleo Transdisciplinar de Meio Ambiente e Desenvolvimento (NMD-UFSC).

Através do NMD, Paulo interveio fortemente nas exigências hodiernas, em especial junto ao litoral brasileiro. Entre as comunidades diretamente beneficiadas pelo zelo cidadão de Paulo realço a região de Ibiraquera e Garopaba (SC).

O segredo para ser Pelé universitário não reside no permanente esforço de aprimoramento intelectivo. Aqui o mérito é, deveria ser, usual, pois nele reside o eixo gravitacional de todo espaço acadêmico. Ocorre que esta intensa busca pela competência individual agudiza nossas idiossincrasias, a ponto de sequer percebermos o caráter coletivo do jogo que rege o ateneu, commons no qual estamos todos no mesmo time.

O segredo da excelência nas universidades está em saber trabalhar coletivamente, o grande fundamento desta instituição. Isto não é usual, pois o turbilhão da inaudita competitividade que pontifica no meio acadêmico em geral acirra a individualidade e isola autisticamente.

Paulo nunca foi Paulo, assim sozinho. E não me reporto apenas ao NMD e seus orientandos. A sua dedicada e intensa vida intelectual primou pela interação com dezenas de pesquisadores dos mais diversos países, instituições e áreas, seja no âmbito da sociologia, seja da economia, agronomia, ecologia ou da filosofia das ciências, sempre buscando as interfaces e aproximá-las. Contrapondo-se à especialização centrífuga cada vez mais dominante, Paulo Vieira foi fiel ao âmago do que significa a universidade: universitas.

Verdadeiro maestro, Paulo congregou incontáveis intelectuais nos inúmeros colóquios e coletâneas que organizou. Deles destaco apenas o seminário “A pequena produção e o modelo catarinense de desenvolvimento”, do qual resultou uma já clássica obra homônima (2002). Esta publicação deu-se, aliás, no âmbito da Associação Brasileira de Pesquisa e Ensino em Ecologia e Desenvolvimento (APED), entidade que, animada carinhosamente por Paulo Vieira, gerou uma fecunda e modelar produção bibliográfica.

Tendo também grande parte das suas pesquisas e publicações em coautoria, é justo concluir que toda sua vida balizou-se por trabalhar interativamente. Dando passes primorosos a alunos e colegas, Paulo, como poucos, soube criar um ambiente mágico e participativo que fez aflorar a criatividade e o melhor de cada um.

Em todas suas atividades registra-se a presença constante de Anne-Sophie, sua esposa. Paulo Freire seria irreconhecível sem esta amorosa parceria. Sem Sophie, Paulo não seria Paulo.

Tal como Pelé em vida, seus méritos foram mais reconhecidos no exterior (o que desabrochou em inúmeras parcerias e convênios com múltiplos países), como por exemplo em https://centrere.uqam.ca/chercheurs-associes/paulo-henrique-freire-vieira/.

Já os colegas de sua universidade subitamente o descredenciaram no final de 2021 de um dos programas de PG que colaborava e do qual era fundador. Imediatamente, seus alunos e amigos, em solidariedade, interpuseram uma “Moção de Desagravo”.

Legítimo Pelé acadêmico, Paulo Freire corriqueiramente procedia de modo meticuloso e perfeccionista. Foi uma pessoa comedida e da mais absoluta discrição, e até timidez. Nunca buscou holofotes. Sempre atualizado, estava cada vez mais lúcido, preciso e fecundo, como os bons vinhos, aliás! Seu brilho ético e conceitual será eterna fonte de inspiração para os que o conheceram, e conhecerão!

Sua vasta e sólida produção acadêmica tornou-o referência imprescindível e de ressonância global no interdisciplinar campo de ecologia, desenvolvimento e território. Sua contínua e infinda orientação de sucessivas gerações de alunos, seu incansável agir em extensão, aproximando a universidade das urgências da sociedade, muito fizeram para o engrandecimento da UFSC. Por seu intermédio, esta instituição ainda contou com a presença de pensadores do mais alto quilate, como Ignacy Sachs, deslocando-se duma acantonada periferia…

Superar o “complexo de vira-lata” é vital para que povos outrora colonizados – e até há poucas gerações ainda escravizados – prosperem. Por ressoar na área científica, a contribuição de Paulo para nos dar altivez de alma e injetar esperança e imaginação não é menos decisiva que a do Pelé, nem a do outro Paulo Freire, mais famosos.

A saudade já bate forte, muito forte… Grato, Paulo, muito grato!!!

Armando de Melo Lisboa é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais do Centro Socioeconômico (CNM/CSE) da UFSC e ex-diretor da Apufsc-Sindical (2006-2010)