A feira e a segunda-feira

Por Fábio Lopes*

A Feira de Cursos da UFSC, ocorrida na semana passada, foi um imenso sucesso. A Reitoria e, em particular, a PROGRAD merecem todos os créditos por conceber e viabilizar a iniciativa. Milhares de jovens de um sem-número de escolas da região acorreram ao campus, onde puderam tomar contato com o rico cardápio de opções de formação oferecido pela Casa. Era impossível transitar pelas galerias de estandes sem ser contaminado pelo deslumbramento dos visitantes e a empolgação com que foram recebidos por nossos docentes, técnicos e discentes. Há muito tempo, não se via na Universidade um clima tão vibrante, comovente, esperançoso. Os três dias em que o evento aconteceu foram um tempo de trégua, durante o qual nos foi concedida a Graça de podermos nos esquecer do rosário interminável de problemas que assolam a UFSC.

Concluída a festa, resta a inevitável pergunta drummondiana: e agora, José? Ao contrário do que sucede a outros carnavais, esse breve interlúdio dionisíaco que acabamos de viver não precisa terminar em ressaca. É verdade que os dilemas da UFSC seguem intactatos e esperavam por nós no segundo seguinte ao encerramento da Feira. Mas é igualmente certo que podemos sair transformados da Feira de Cursos, desde que saibamos extrair dela as lições corretas. 

Graças ao evento, o número de candidatos às vagas ofertadas pela UFSC certamente crescerá. De resto, não tenho nenhuma dúvida de que os concorrentes comparecerão às provas muito mais animados, motivados e convictos de suas escolhas. O ponto é como sustentar esse estado de espírito nos ingressantes, como transmitir esse elã a quem já está há mais tempo na instituição e se encontra desgastado pela convivência com seus muitos limites e entraves. O ponto, em outras palavras, é como criar as condições para que a UFSC se alimente da força que a Feira criou nos vestibulandos, ao invés de esvaziá-los desse entusiasmo, lançando-os na vala comum do desalento e da dispersão que hoje prosperam na comunidade universitária.

A mim está claro que, para alcançar tal objetivo, a primeira coisa a fazer consiste em perceber que o êxito da Feira, assim como o fascínio e a felicidade de quem a frequentou, é um sinal insofismável do gigantesco prestígio da Universidade na cena pública. Apesar do bolsonarismo e de todos os ataques à cultura, à arte e à ciência, a UFSC segue dispondo de um capital simbólico muito grande. 

Os meninos e meninas que estiveram na Feira aprenderam um bocado conosco. A questão é saber se nós aprenderemos com eles aquilo de que parecemos ter nos esquecido: do quanto a UFSC é importante para as pessoas aí fora, do quanto ela faz parte dos sonhos mais preciosos de jovens catarinenses e brasileiros, do quanto – para além das bravatas e do histrionismo da extrema-direita –, uma quantidade imensa de pessoas, inclusive eleitores do Capitão, reverenciam a Universidade.  Não é que a UFSC não tenha inimigos. Mas ela tem muito mais amigos do que a gente ultimamente se acostumou a imaginar que seja o caso. 

Fico sempre pasmo ao ver como uma instituição exuberante como a nossa – que reúne 50 mil pessoas na “flor de seus pecados”, como diria o pai de Hamlet – insista em se representar sempre como instância frágil, ameaçada, à beira de um ataque de nervos. Custo a crer em como professores, TAEs e estudantes se deixam dominar pelo pessimismo, a melancolia, a tristeza, o desânimo. 

“Ainda não superamos a morte do Cancellier”, me disse outro dia uma colega, cerca de seis anos depois do suicídio do reitor. De outra professora, ouvi na semana passada que os efeitos desagregadores e depressores da pandemia continuariam a rondar os nossos espíritos. Um terceiro docente – jovem, belo, inteligente e dono do que Nelson Rodrigues chamaria de “saúde de vaca premiada” – confidenciou-me há uns poucos dias que, tivesse ele que escolher uma carreira hoje, jamais seria docente na UFSC. Na mesma semana, uma outra professora – profundamente comprometida com a profissão e com o progressismo – revelava-me entrar em sala de aula com medo de dizer algo que fira os novos cânones comportamentais relativos a gênero, etnia, etc.. “Sou de outra geração, mas quero aprender como essa nova geração quer ser tratada”, comentou ela, sem se dar conta de que sua autocensura é tal que ela já deu de barato que a nova geração está absolutamente certa em suas exigências e não pode ser questionada. 

Que diabos está acontecendo? Objetivamente, nada disso faz o menor sentido. Gozamos de liberdades impensáveis para a quase totalidade de nossos compatriotas. Os professores e mesmo os TAEs ganham salários que podem não ser os ideais mas estão muito acima da média nacional e nos elevam ao topo da pirâmide da renda brasileira. Na pandemia, mesmo sob as agressões de Bolsonaro, pudemos permanecer em casa –  infinitamente protegidos e regiamente pagos – por muito mais tempo do que os brasileiros em geral (sem falar no fato de que fomos vacinados antecipadamente). E agora, para completar, a Feira de Cursos nos ensina o grande segredo de Polichinelo: somos incrivelmente respeitados por aqueles que mais importam, a saber, os jovens postulantes aos nossos cursos e seus pais. Diante de quadro tão material e afetivamente favorável à UFSC, deveríamos estar liderando a vida intelectual e política da cidade, do Estado e do país com muitíssimo mais desenvoltura, coragem e desinibição – e, no entanto, eis-nos prostrados, à espera dos bárbaros, como no poema de Kaváfis.

Na semana anterior, escrevi neste mesmo espaço um artigo sobre o declínio da função docente na UFSC. Creio que restabelecer a autoconfiança, a autoridade e centralidade do professorado na instituição é a mais urgente tarefa a ser cumprida no sentido de possibilitar que a Universidade, para repetir a velha e excelente expressão de Nietzsche, torne-se o que ela é, isto é, desenvolva plenamente a sua quase inesgotável força potencial e cumpra aquilo que as condições objetivas em que trabalhamos prometem e possibilitam.

Para tanto, é preciso envolvimento e autoconsciência de todos. Mas tudo isso começa com políticas institucionais hoje ausentes. Há todo um conjunto de tópicos que, a despeito de sua importância, claramente não poderiam ser centrais – ao menos não neste momento –, mas estão sempre se adiantando em relação a questões acadêmicas (isso quando esse escanteamento das questões acadêmicas não acontece em prol de pura baboseira ideológica e demagógica). Exemplo gritante disso se deu na última reunião do Conselho Universitário. A pauta original do evento previa que discutiríamos primeiro a resolução a respeito do ensino remoto nas pós e em seguida a resolução de proteção de direitos do público trans na UFSC. So far, so good. O problema é que essa benfazeja prioridade atribuída a um tema essencialmente universitário – ainda mais urgente em vista do fato de que, por manobras protelatórias de conselheiros TAEs e estudantes, o processo de regulamentação do ensino remoto nas pós estava se arrastando no CUn há um ano – não durou muito: no início da reunião, foi solicitada e aprovada a inversão da ordem do dia, de modo que a resolução relativa aos trans passou ao primeiro lugar. Ato contínuo, algumas dezenas de representantes da comunidade trans entraram na sala para pressionar os conselheiros. Pior: à primeira manifestação de conselheiros de que talvez alguns pontos da resolução – em particular a criação de cotas para indivíduos trans no serviço público – merecessem discussão mais aprofundada, seguiu-se uma saraivada de acusações de transfobia. A pró-reitora da PROEX – que estranhamente relatava o processo, mesmo sendo este de iniciativa da própria reitoria, em um caso claro de endogamia – declarou, sob aplausos, que a hora da aprovação do documento sobre os trans era aquela e que a coisa tinha acontecer daquele jeito mesmo, isto é, (cito-a) “goela abaixo”. Os leitores – a quem, em todo caso, é dada a oportunidade de checar essas informações no vídeo da reunião do CUn disponível na página do órgão – que tirem as suas próprias conclusões. Em tempo: escreve aqui alguém que, no já longínquo ano de 2002, aceitou orientar uma das primeiras da teses de doutorado da UFSC sobre temas trans.

Outra instância que nos tem faltado na superação das armadilhas cognitivas e ideológicas que hoje impedem que a instituição reconheça a sua própria grandeza e prestígio (liberando, assim, a gigantesca força represada e a estupenda demanda reprimida que habitam os escaninhos desta Universidade) é o sindicato docente. Se é verdade que, há cerca de um mês, a Apufsc finalmente reconheceu que estamos diante de uma Reitoria para a qual a docência não tem sido prioritária, é igualmente verdade que sua diretoria já aceitou o disparate de ter nossa sede derrubada por ordem da Prefeitura Universitária. Não consigo imaginar um sinal mais contundente do eclipse da função docente na UFSC do que essa docilidade com que se admite que o prédio do sindicato –  verdadeiro monumento ao tempo em que, por meio de greves extraordinárias e uma certa grandeza política, a docência salvou esta Casa da ruína – seja derrubado por burocratas e tecnocratas.        

Que o sucesso da Feira abra os olhos de todos – em especial, da Reitoria – não apenas para o quanto somos capazes de fazer mas sobretudo para o que devemos fazer. E o que, antes de mais nada, devemos fazer, suponho, é restituir nos docentes o prestígio e a autoridade perdidos, sem o que a massa de jovens tão plena de expectativas que ingressará na instituição haverá de se perder também no labirinto  em que  a UFSC no momento claudica.

*Fábio Lopes da Silva é diretor do CCE/UFSC