A chuva sobre nossas cabeças

Por Fábio Lopes*

Cena 1: há não mais do que um par de dias, recebi em minha sala uma colega para tratar do pagamento de diárias a quatro docentes da UFSC. Como não havia mais tempo para que dois deles entrassem com a solicitação, ela propôs que os dois professores já contemplados recebessem os valores e os dividissem com os demais. Tive que lembrá-la de que essa partilha informal – e ilegal – de recursos foi precisamente um dos procedimentos que levaram à Ouvidos Moucos.

Cena 2: também nesta semana, presenciei o seguinte diálogo entre dois altos dirigentes da UFSC. Um deles perguntou se o único TAE de um setor poderia mantê-lo fechado enquanto fazia teletrabalho ou se ausentava depois de cumprir jornada de 6h. O outro respondeu de bate-pronto: “Nesse caso, penso que tem  que haver um acordo com a chefia”. Ao que o colega que estava com a dúvida insistiu: “Minha questão é se isso pode?”. A ficha de seu interlocutor finalmente caiu: “Ah, você está querendo saber se a medida é legal? Bem, aí eu ão sei dizer.”

As duas historietas devem soar familiares a muita gente que lê este artigo. Na UFSC, a cultura cada vez mais consolidada é a de que um bom acordo entre as partes envolvidas resolve as coisas, não importa o que a lei exija (o que via de regra significa que nem nos damos ao trabalho de checar o que a lei diz sobre o assunto de que estamos tratando). Nem mesmo o trauma do suicídio do reitor mudou essa mentalidade. A rigor, a paixão e a morte do Prof. Cancellier só fizeram agravar a convicção de que somos inocentes e, por isso, podemos fazer o que nos der na telha (a propósito, já repararam que, nas continuadas homenagens ao reitor falecido e nas denúncias às arbitrariedades contra ele cometidas, jamais se mencionam os nomes dos outros professores e TAEs submetidos às mesmas humilhações pela Ouvidos Moucos? Não estranho que os vivos, a quem alguma solidariedade real e efetiva ainda poderia ser prestada, sejam sempre deixados de lado?).

A última reunião do CUn, ocorrida em 5 de setembro, levou essa cultura da ilegalidade consentida ao paroxismo. Na abertura dos trabalhos, o reitor colocou em votação o acréscimo de um item à ordem do dia. Ocorre que isso é expressamente proibido pelo Regimento do Conselho (Art 8º, § 2º: “Qualquer Conselheiro poderá sugerir a inclusão na pauta de assunto específico que, se aprovada em plenário, constará obrigatoriamente da ordem do dia da reunião subsequente”). Diante do flagrante erro da presidência dos trabalhos, o diretor do CTC levantou uma questão de ordem, solicitando a suspensão da votação. Tudo inútil: o Prof. Irineu indeferiu a objeção do conselheiro, e vida que segue. A alegação? “A plenária é soberana, e não é a primeira vez que um encaminhamento desse tipo se dá”. De nada adiantaram os protestos de colegas nos microfones ou no chat de discussão da reunião (que, aliás, estranhamente sumiu da tela de transmissão no Youtube tão logo a temperatura do debate se elevou). Em manifestação pública, uma conselheira resumiu o tamanho do disparate que se desenrolava diante de nossos olhos: “Se não precisamos seguir o regimento, para que temos um?”. Ainda assim, o Conselho aprovou a inclusão.

De minha parte, me retirei imediatamente do evento, declarando que não compactuaria com um ato obviamente ilegal.

É preciso compreender de uma vez por todas que um regimento ou qualquer outra determinação legal é tudo que nos protege do arbítrio e do casuísmo. Pode parecer excitante e mesmo funcional passar por cima de regramentos quando isso atende os nossos interesses imediatos, atalha rotinas burocráticas ou impõe sobre minorias o poder da maioria da qual fazemos parte. Mas a experiência política elementar e o simples recurso ao bom senso já deveriam ter nos ensinado que o jogo institucional frequentemente vira, e as maiorias estabelecidas em determinado momento transformam-se em minorias desprotegidas no momento seguinte. Democracia não é apenas sobre a vontade da maioria, mas também  sobre proteger as minorias dos excessos da maioria. 

“A plenária é soberana”. Não é possível que as pessoas não se deem conta do quão indecorosa – e perigosa – é essa formulação. Mas o problema é que infelizmente estamos cada vez mais habituados a ela, seja porque tememos o poder das maiorias, seja porque esperamos algum dia tirar benefício da informalidade que prospera na UFSC, seja porque, por razões ligadas à tradição autoritária brasileira, simplesmente temos dificuldade de refletir sobre o conceito de democracia, que dirá extrair consequências práticas dessa reflexão.

Os sinais do estiolamento da lei na UFSC estão por toda parte. Às vezes eles nos favorecem. Mas creio estar ficando claro para todos que os efeitos deletérios desse processo trazem prejuízos muito maiores do que os dividendos obtidos pelos jeitinhos encontrados ou os acordos feitos à revelia do que a lei manda. Pensem, por exemplo, na nossa incapacidade crescente de cobrar de estudantes e colegas TAEs ou professores que eles cumpram suas obrigações legais. Pensem, por exemplo, nos assédios e constrangimentos a que somos submetidos mas que não denunciamos por não nos sentirmos amparados pela instituição. Pensem no fato de que, em sala de aula, cresce entre nós o medo de contrariar veleidades de alunos, de exercer a liberdade de cátedra, a liberdade de opinião. Pensem no número de vezes em que desistimos de uma determinada iniciativa perfeitamente legal por presumir que a legalidade na instituição já não é mais argumento para que as coisas aconteçam. Pensem em quantas vezes tivemos vontade de gritar que o rei está nu, mas, como um certo personagem de Nietzsche, preferimos nos envolver no manto da omissão e caminhar a passos lentos sob a chuva que cai sobre nossas cabeças.  

*Fábio Lopes da Silva é diretor do CCE/UFSC