A greve e a crise da universidade

Por Fábio Lopes da Silva*

Na semana passada, publiquei neste mesmo espaço um texto blue sobre uma situação absolutamente chocante: a indiferença de boa parte de discentes e docentes diante do sofrimento extremo de uma trabalhadora terceirizada nas dependências do CCE. Ainda sob o impacto dessa absurda reação de indivíduos com quem convivo diariamente, adotei um tom essencialmente moral em minha manifestação. Mas é preciso transcender a crítica estritamente deontológica – que é, em todo caso, necessária –  e tentar compreender as causas desse comportamento abjeto em plena Casa do Saber.

Outro dia, o cientista Miguel Nicolelis comentava em entrevista os perigos da Inteligência Artificial. Para ele, o risco maior não está em as máquinas substituírem os seres humanos, mas antes no contrário: os seres humanos passarem a agir sob a lógica binária e impiedosa das máquinas. Parece-me claro que isso já está em curso. Um único exemplo basta para que eu defenda meu ponto: em viagens e programas de fim de semana, as pessoas costumam dedicar um tempo cada vez maior à produção minuciosa e perfeitamente artificial de poses e cenários para fotos, como se os posts e likes nas redes sociais importassem muito mais do que a experiência mesma de estar em um lugar interessante, cool ou exótico. 

A essa marcha da dessensibilização deflagrada pela presença do mundo virtual em nossas vidas somam-se os efeitos daquilo que tem se chamado de crise das democracias. À diferença do que os progressistas parecem imaginar, o problema não está apenas no avanço da extrema-direita mas nas repercussões que bolsonaristas e outros bichos provocam em seus adversários. Ao rebaixamento radical dos padrões de comportamento perpetrado pelos so-called fascistas corresponde um alargamento indevido e pernicioso do que nós mesmos, do lado de cá do espectro político e ideológico, consideramos aceitável. E é claro que não há como isso dar certo. Como costumo dizer a meu filho – estudante de Filosofia na UFSC –, ser bom dá trabalho. Limitar-se a declarar-se antibolsonarista e a não ser um ogro completo e acabado está longe de ser suficiente para humanizar-se. 

Só que tudo isso ainda são fenômenos muito gerais, que dizem respeito à sociedade como um todo. Creio que vale procurar os motivos propriamente universitários do indiferentismo – roubo  à expressão de Pasolini – que se apresentou tão claramente no episódio recentemente ocorrido no CCE.

Creio que, naquilo que concerne especificamente ao ambiente acadêmico, a reação das pessoas ao incidente relatado em meu texto anterior decorre do agravamento de uma tendência há muito estabelecida: aquela que afasta a universidade da vida social.

Entenda-se: nossa instituição precisa de uma certa reclusão, de um certo recolhimento, de um certo distanciamento crítico em relação às coisas do mundo. A autonomia universitária, de resto, é um valor necessário à preservação de liberdades sem as quais o pensamento embota. Mas há um risco em tudo isso: o de a separação entre a universidade e a sociedade tomar proporções que comecem a colocar em xeque a própria reprodução da rotina acadêmica.

A meu juízo, dois fatores parecem concorrer para que essa separação entre universidade e vida social se torne cada vez mais profunda. O primeiro é de ordem  material: embora em termos absolutos a renda dos professores conheça uma queda expressiva, isso nem se compara à perda de poder de compra que afeta a imensíssima maioria dos brasileiros. O empobrecimento radical das pessoas e a precarização das relações de trabalho ao nosso redor cava um imenso abismo entre nós e uma massa crescente de nacionais, como se, a rigor, duas castas estivessem se formando. Estamos tão distantes dessa pobreza e dessas circunstâncias barbaramente opressivas quanto os super ricos estão de nós. 

O outro fator a determinar a insensibilidade especificamente universitária tem raízes histórico-sociológicas um pouco mais profundas. Explico-as a seguir.

Na década de 1990, o governo FHC desferiu um ataque violentíssimo contra a universidade. Um projeto claro de transformação, para muito pior, da vida acadêmica (formulado e posto em funcionamento por uma burocracia extremamente competente) se abateu sobre nós. Mas soubemos responder à altura: sobretudo via sindicato, conseguimos conter os aspectos mais deletérios desse projeto. Não foi um 7 a 1, mas o que se viu foi uma vitória de nossa parte.

Ocorre que o preço desse triunfo foi bem elevado. Greves longuíssimas e extenuantes – inclusive, com corte de salário e greve de fome – tiveram lugar. Quando em seguida veio o governo Lula e acenou com uma recuperação espontânea de parte de nossa renda e das condições de trabalho, nós – exauridos – recebemos esses benefícios como se fosse maná a cair dos céus.

Sentindo-nos minimamente protegidos e contemplados, fomos cuidar de outros assuntos: nossa formação, nossos projetos, nossa vida particular, nossos interesses, nosso boi na sombra. 

O problema é que se tratava de uma primavera precária, assentada economicamente sobre a alta momentânea do preço internacional das commodities e politicamente sobre o volúvel e fisiológico PMDB. Como não poderia deixar de ser, os gambitos que sustentavam Lula e Dilma acabaram se fraturando e indo ao chão. Ato contínuo, desfez-se o sonho – absurdo mas por nós acalentado por cerca de dez anos – de que a universidade viveria feliz para sempre. Desarticulados e perplexos, mergulhamos em um pessimismo atroz e uma paralisia da qual não saímos até hoje.

Pior, muito pior: a camada protetiva aplicada pelos governos petistas na universidade já havia adensado ainda mais a já mencionada separação entre universidade e sociedade. Se sempre vivemos um pouco em uma bolha, agora a bolha havia se transformado em um cofre-forte. Ao investirmos tanto e por tanto tempo em nossos planos e carreiras pessoais, terminamos por empobrecer dramaticamente o ambiente político, social e sindical na universidade, o que sempre significará  empobrecer o ambiente intelectual. E bem sabemos o que Hannah Arendt nos ensinou sobre o papel do encruamento da capacidade de pensar e se relacionar com outros na gênese daquilo que ela chama de banalidade do mal, isto é, a circunstância de o mal ser praticado não por um espírito demoníaco ou perverso mas por pessoas comuns.

A metáfora perfeita para os efeitos da forma especificamente universitária de banalidade do mal foi um evento acadêmico continuar acontecendo no CCE mesmo depois de as pessoas que nele terem se dado conta de que que uma pessoa urrava de dor e desespero a dez metros – literalmente dez metros – dali (provavelmente, o palestrante convidado, em sua exposição, tenha falado em empatia, solidariedade e outros valores humanistas). 

Há um óbvio problema moral no que estamos atualmente produzindo e promovendo na universidade. Mas a fonte maior do problema é político e sociológico, suponho. Alguns aspectos desse problema são muito maiores do que nossa capacidade de atuar em relação a eles.  Mas há outros que estão ao nosso alcance resolver – e que precisamos resolver.

Escrevo este artigo às vésperas da possibilidade de decretarmos uma greve. Tomara que, se a paralisação acontecer, ela comece a mudar as coisas na instituição, restabelecendo certos parâmetros mínimos de convivência, participação e politização. Contudo, tenho lá minhas dúvidas de que isso vá acontecer. O pior dos mundos seria, mal saídos de uma pandemia (na qual, a meu ver, em que pesem todas as angústias e incertezas daquele momento, nos movimentamos a uma velocidade e com um poder de decisão e um comprometimento ético bem menores do que as condições objetivas permitiam), voltemos a nos apegar ao moletom surrado e entreguemo-nos de vez aos confortos (e misérias) de nossas vidas privadas.

Temos razões para fazer greve? Sem dúvida. Mas temos também razões para reorientar radicalmente o sentido atual de nosso trabalho, que, de resto, em sua alienação, é uma dos motores de nossa letargia, de nosso decrescente prestígio social e, por conseguinte, em alguma medida, do desfinanciamento da universidade. Como eu disse há pouco, é possível que a greve seja um primeiro gesto capaz de nos tirar desse buraco. Mas pode ser também que, ao reduzir grotescamente o nosso drama à falta de reconhecimento por nosso trabalho (como se esse trabalho fosse virtuoso em si mesmo e não precisasse ser por nós diária e cuidadosamente legitimado junto à sociedade), a greve venha a aprofundar a nossa crise. 

*Fábio Lopes da Silva (Diretor do CCE)